Revista do NEFILLI

Núcleo de Estudos Filológicos, Lingüísticos e Literários – NEFILLI

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CONTO E ENCANTO

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domingo, 20 de novembro de 2011

Uma Análise da Intertextualidade em José Lins do Rego nos Romances do “Ciclo da Cana-de-Açúcar” (Parte II)

Profª. Drª. Bárbara de Fátima.


2- Paralelismos entre os romances Moleque Ricardo (Black Boy Richard) e As Aventuras de Huckleberry Finn (The Adventures of Huckleberry Finn).

                O personagem-título do romance de José Lins, o moleque Ricardo representa ao longo da estória a união do trágico na dualidade campo x cidade. Mais uma vez o meio ambiente, a natureza entra freqüentemente em cena a fim de descrever os acontecimentos sociais e políticos da cidade grande e os problemas enfrentados na zona rural com os seus moradores do engenho Santa Rosa, a influência do meio-ambiente nestes personagens e a comparação que de maneira psicológica afeta o moleque Ricardo quando ele está no Recife.

                É GAMA e MELO (1991, p.279) quem o define como:

Ricardo, amolecido pelo barro patriarcal do Santa Rosa, afundada a infância no massapê gordo daqueles engenhos, vem florescer no Recife.

                E o romance de cunho político o Moleque Ricardo (1935) não poderia ficar à margem de toda a natureza apresentada pelo autor José Lins. É um estudo dos vários tipos de influências nas coisas e nas pessoas introduzidas no texto através das comparações em relação:

         a) Ao meio ambiente:

1-      As tardes, Ricardo ficava sentado debaixo das mangueiras do quintal quase sempre a esta hora as cigarras cantavam na rua do Arame. (p. 87)
2-      O barulho que os ventos faziam nas árvores chegava até o quarto de Ricardo. Uns galhos do cajueiro davam para um lado da venda. De noite, ali com Francisco, o moleque bem que se banhava do Santa Rosa, dos arvoredos de lá. A lua banhava tudo de branco como nas cajazeiras da estrada. (p. 129-30)
3-      Quando chegaram no poste da estrada, o sol descia com toda a sua pompa de cores sobre o mangue cheio. Maré plena. Havia ouro na água serena, um ouro dos raios de sol, brilhando para a vista. (p. 200)
4-      Só no mangue se podia ver a luz do sol se pondo. Um ventinho frio balançava as folhas dos coqueiros. (p. 223)
5-      A lua vagava pelo céu da rua do cisco bem de longe do fedor do curtume, espelhando-se no mangue silencioso. Ali não cantavam sapos como nas lagoas do Santa Rosa, a água era imunda e serena. (p. 247)

           b) Às pessoas:

1-  Só as caras é que eram tristes. Ricardo no meio deles lembrou-se  dos trabalhadores na volta do eito. Os de lá vinham com mais lama no corpo, com a barriga mais oca. (p. 80)
2-     No entanto o patrão o tratava bem, sem gritos, sem aborrecimentos. Também não dava por onde. Vira com os outros aos berros. Os homens da padaria, até o patrício viviam com o patrão pelas goelas.  Ninguém levasse pão para casa que ele visse. Chamava de ladrão a todo o mundo. Não era o “ladrão” da boca do velho Zé Paulino. Era um ladrão que feria os outros com vontade de ofender. Seu Alexandre, porém, gostava de Ricardo. (p. 100)
3-    Cordeiro não lhe respeitava a fama de rico, de herdeiro de latifúndios. Metia o pau nas fendas, nos senhores de engenho, na miséria dos trabalhadores, sem que Carlos de Melo se importasse. (p.132)
4-    O entusiasmo agitava as ruas. O leão do norte rugia por toda a parte, o doutor Pestana discursava para despertar consciência. (p.163)

c-) Aos lugares:

1-      De madrugada, quando saiu para o trabalho, ainda pensava naquelas coisas. O Santa Rosa moendo por conta dos trabalhadores. Qual nada aquilo só em sonho. Os cabras do eito teriam lá essa sorte? Ali mandaria para sempre o grito do velho. (p. 139)
2-      De um estábulo de perto ouvia-se o falatório de gente tirando leite. Tiniam os chocalhos. O moleque se lembrou das manhãs do engenho. Do curral cheio de gado, da lama até nas canelas e dos potes de leite, teve até saudades de lá. (p.168)

          d-) À política:

1-      O operariado de lá continuava agitado. O Doutor Pestana se aliava com os políticos contra o Governo Federal. Os jornais guardavam pela autonomia do Estado, contra os interesses do Presidente da República em mandar em Pernambuco, e por isso a cidade andava em pé de guerra. Cangaceiros chegavam do interior. Dizia-se por toda a parte que o operariado ao lado do Borba. Via-se o chefe Pestana de automóvel como senador. (p.145)

          e-) Aos sentimentos:

1-      O moleque Ricardo andava amando outra vez. O amor de Guiomar rebentara, agora mais sujo, mais violento. O amor dele era mesmo da terra, vivo, de carne, amor melado de luxúria. (p.163) 

         f-) Às crenças:

1-      Seu Lucas oficiava num culto. Era sacerdote de Xangô, pai de terreiro. O que ele ganhava nas flores gastava com o Deus dele, com os negros que lhe tomavam a benção, com as negrinhas que dançavam na sua igreja. Estivera preso como catimbozeiro, como negro malfeitor. Mas seu Lucas passava por tudo isso sem mágoa. (p.117)

        g-) À profissão:

1-    Agora Ricardo trabalha para um portuga numa padaria. Deixara a casa de dona Margarida a chamada de um vendedor de pão. Colocou-se como carregador de balaio, com noventa mil réis por mês, e lugar para dormir. (p. 89-90)
2-    O próprio Dr. Pestana não passava de um capanga titulado, um instrumento de política burguesa. (p. 184)

       h-) Às festas populares:

1-      Era aquele o primeiro carnaval em que Ricardo se metia. Passara os outros ali em Recife, de fora, fora de tudo, do povo, da música. No engenho se falava das mascaradas, mas ninguém deixava a enxada nos três dias. Eram dias como os outros. Pela estrada apareciam mascaradas que todo mundo sabia que eram. Vestiam-se de negra e estalavam os chicotes, procurando pegar os moleques, que corriam se mijando de medo para as saias das mães. Na casa-grande, às vezes, quando havia gente de fora, sacudia a água uns nos outros. E o coronel na calçada rindo-se das raivas e dos sustos que faziam as negras com as bacias d’água sacudidas com força. O carnaval ali era só aquilo.  (p. 219-20)

Como podemos observar Moleque Ricardo (1935) é um romance onde o autor José Lins mescla a estagnação ou estática do engenho Santa Rosa (zona rural) com a movimentação ou dinâmica da cidade do Recife (zona urbana). É um romance de cunho político-social, é também rico em detalhes e com diversificação em seus tipos humanos. Na política, temos “a figura do Dr. Pestana, o político, o amigo dos operários, com um olho na Câmara Federal, é um grande achado”.  (SOBREIRA, ibidem, p. 48)

Em se tratando de história e política, o historiador José Octávio (1974, p. 47) relata com grande ênfase os mitos políticos de uma época, as quais influenciaram as idéias de José Lins:

É nesse particular, que reponta a marcante contribuição dos trabalhistas, quase todos jornalistas-políticos-escritores: Joaquim Pimenta, Agamenon Magalhães, Agripino Nazareth, Lindolfo Collor. A partir daí, o debate sobre o problema social brasileiro adquirirá um cunho visivelmente mais realista. [...] restava agora solver o outro problema: a redistribuição da riqueza nacional.

                Ao fugir do engenho Santa Rosa, Ricardo procurou fugir da pobreza, porque lá os homens não conheciam a greve, nem os movimentos que procuravam lutar em prol dos trabalhadores como havia no Recife.

Uma consciência de classe, ainda indistinta ainda possível de exploração como acontece na luta política que envolve o Recife da época. Com o Dr. Pestana, com um socialismo para uso externo, arrebatando as massas e dizendo-se líder do proletariado, quando deles quer apenas o apoio, um apoio que lhe possibilite conquistar uma deputação federal. (MELLO, ibidem, p. 281)

                Quanto ao estudo do aspecto social, o autor José Lins foi um,

[...] romancista, autêntico, sincero, de olhos abertos à realidade, sentiu o drama da miséria dos mocambeiros, a miséria de Florêncio, morrendo no mangue, enquanto o patrão pagava automóvel para a mulata se pavonear no carnaval. Viu o drama humano e retratou-o, como tinha retratado o dos párias do engenho. (MELLO, ibidem, p. 304)

                De acordo com a opinião de GAMA e MELO (ibidem, p. 304), José Lins:

Sem saber, estava oferecendo um documento de grande importância para a estruturação do pensamento político das novas gerações nordestinas.

                Não poderíamos deixar de focalizar no estudo desse romance toda a força de José Lins que provém do seu interior e transborda da intertextualidade que ele apresenta ao retratar o moleque Ricardo, que foi anteriormente vivenciado pelo negro Jim em The Adventures of Huckleberry Finn (1883), um romance de Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens) (1835-1910), onde o negro Jim escapa da escravidão com o amigo Huck Finn em uma balsa e, longe da civilização, eles tentam superar as dificuldades, passando a cultuar o advento de outros valores distorcidos pela distinção de classes inferior e superior, pelo racismo, pelo preço a ser pago pela sua liberdade, etc.


MOLEQUE RICARDO


NEGRO JIM
SANTA ROSA
(liberdade)
Miss WATSON’S SLAVE
(injustiça social)
RECIFE
(crescimento pessoal)
RAFT
(fortalecimento da amizade)
FERNANDO DE NORONHA
Prisão
(injustiça política)
LIBERTY
(adoção por Tia SALLY)

                 
             A figura central da estória é Huck Finn: a estória é contada sob o seu ponto de vista, na primeira pessoa. Huck vê e relata: algumas vezes ele entende o que ele vê, e então ele a interpreta. Algumas vezes ele não entende, e isto é também significante. O tema central da estória é observado no primeiro e no último capítulo: a luta de Huck contra a sua não vontade em tornar-se civilizado. Ele está sempre envolvido em aventuras reais e é constantemente advertido por sua consciência. Durante toda a viagem pelo rio, ele tenta responder a pergunta se está certo o que a irmã da viúva está fazendo ou se é Jim. A sua preocupação com a justiça, o está colocando no centro de um dilema. Qualquer que seja a escolha que ele faça, ele está errado. Ele está errando se Jim voltar com ele para escravidão; ele está errando com Miss Watson se ele ajudar Jim a fugir. Huck não tem jeito de saber se ele está certo. Ele deve seguir os mandos de seus sentimentos todo o tempo. A única coisa que ele pode fazer é aprender através da experiência. E ele faz. (BUTRYM, 1977, p. 7)

                A aventura no Rio Mississipi, uma das mais fascinantes viagens, começa no capítulo XII.  Este capítulo está repleto de referências à vida idílica que Huck e Jim estão vivendo. O principal item desta vida é a balsa. É nesta balsa, uma oferta do rio, na qual os dois farão  as suas jornadas (TWAIN, 1961, p. 23):

Daytimes we paddled all over the island in the canoe. It was mighty cool and shady in the deep Woods, even if the sun was blazing outside. We went in and out amongst the trees, and sometimes the vines hung so thick we had to back away and go some other way.
(Durante o dia nós remamos através da ilha na canoa. Era bastante frio e ensombrado na floresta adentro, até se o sol estivesse queimando do lado de fora. Entrávamos e saíamos entre as árvores, e algumas vezes as trepadeiras eram tão espessas que nós tínhamos de voltar e prosseguir por outro caminho).[1]

                Eles flutuavam pelo rio, parando aqui e acolá para comprar alguns suprimentos ou “pedir emprestado” uma galinha, um melão ou uma abóbora. Quando ele encontravam aventura, Jim diz a Huck:  “Better let blame’ well alone”. (TWAIN, ibidem, p. 32) (Melhor sermos censurados do que deixarmos de fazer).

                O principal objetivo da fuga de Huck em balsa está ligado ao tema da desumanidade do homem para o homem. Nós observamos este fato claramente no capítulo XVIII, onde o orgulho da luta feroz entre os Grangerfords e os Shephersons com os incidentes que ninguém pode agora relembrar. Eles se respeitam, mas também se destroem. Um bom exemplo disso é o caso de amor entre Sophia e Harney, o qual lembra-nos do amor em Romeo e Julieta de William Shakespeare. É importante observar, como Huck só é feliz quando ele volta ao rio, à balsa e à Jim novamente. Ele está profundamente impressionado pela sordidez, pela sede de sangue e a crueldade e estupidez dessas famílias altamente respeitáveis. Este fato o faz sentir-se doente interiormente.

                Toda esta jornada descreve principalmente o crescimento de Huck e Jim e o conseqüente amadurecimento em relação às emoções vividas. No capítulo XIX, a jornada idílica de ambos usando o rio e apreciando a beleza e bondade da Natureza, maculada somente onde fora tocada pela mão do homem. A calma, a tranquilidade e o sossego do rio são desfrutados por Huck.

                O termo fuga, aqui mostra o contato real de Huck com a civilização, como aconteceu com o moleque Ricardo. Sua verdadeira jornada balança entre dois mundos: o contraste entre o rio e a civilização que é o objetivo do romance. Muitos críticos enfatizam a importância da diferença entre esses dois mundos, e eles questionam como Huck, um garoto branco, está sendo colocado entre velhas lealdades e as regras da civilização e sua própria escravidão, de um lado, e a fascinação de um rio, um novo mundo com valores diferentes e sua própria liberdade, do outro lado, como por exemplo, quando no capítulo XXIV, Huck é tido como rebelde por estar contra a conduta cruel do King e do Duke. O desgosto de Huck é também um reflexo da atitude de TWAIN em relação à falsidade e à desumanidade. Huck diz: “It was enough to make a body ashamed of the human race”. (TWAIN, ibidem, p. 83) (É o bastante para fazer um corpo envergonhar-se da raça humana).  

                Os momentos de crise de Huck aparecem quando ele finalmente resolve seguir seu coração em vez de sua mente; isso ocorre no capítulo XXXXI. Ele sabe que para salvar Jim da escravidão significa fazer a coisa errada, mas ele é um Abolicionista, ou pior, mas ele não é um hipócrita. Ele está certo que vai fazer a coisa errada pela razão certa. Ele decide, e aceita as conseqüências de sua decisão: “All right, then, I’ll go to hell; and tore it up. It was awful thoughts and awful words, but they was said”. (TWAIN, ibidem, p. 106) (Está certo, então, eu irei para o inferno; e o rasgou. Foram pensamentos e palavras terríveis, mas foram ditas). Este é um tipo de ecravidão moral e essa decião de Huck, de acordo com TRILLING (1961, p. 195) significa:

[...] the beginning of the moral testing and development which a character so morally sensitive as Huck’s must inevitably undergo. And it becomes na heroic character when, on the urging of affection, Huck discards the moral code he has always taken for granted and resolves to help Jim in his escape from slavery.
([...] o começo do teste moral e do desenvolvimento o qual um personagem tão sensível como Huck deve inevitavelmente tolerar. E torna-se um personagem heróico quando, no vigor da afeição, Huck rejeita o código moral que ele sempre levou em conta e resolve ajudar Jim em sua fuga da escravidão).

                HANSEN (1963, p. 45-66) afirma que o personagem de Jim é a chave para a compreensão do final do romance.  Comparando Jim com o nível da água do rio, ele afirma que “Jim is raised from the lowest level of comic stage Negro to the highest level of character, the Natural man”. ("Jim é promovido de um baixo nível de estágio cômico de Negro a um alto nível de personagem, o homem comum").

                Percebemos que no final, quando Huck e Jim decidem deixar Arkansas, do mesmo modo, que os níveis do rio, eles estão fugindo dos baixos níveis da cultura Americana para o último nível do refúgio do comum, que é o Território Indígena. Em tais termos, HANSEN vê na fuga de Jim através das águas do rio como um ato místico.

                Se considerarmos o romance sob o aspecto social, é necessário levar em conta o contraste relevante entre o rio e a margem. Esta oposição abrange uma grande parte do romance e mantêm-se em paralelo com a dualidade do bom natural (rio) e do mal social (margem). Além disso, a relevância de tais temas está diretamente ligada com o aspecto da derrota desenvolvida, como o próprio romance nos mostra, no final, esses dois mundos estão socialmente em oposição, como uma conseqüência das relações entre homens brancos e negros no Sul durante a década de 1830. Agindo como um Abolicionista, Huck torna-se o herói da ficção de Mark TWAIN.

                Durante o curso do romance, Huck torna-se um garoto experiente, mais maduro, mais humano como um resultado de sua experiência com Jim no rio e na margem. Huck aprende o valor real da amizade. Ele chora quando Jim é vendido, no final do romance, por dois charlatões (King e Duke) por quarenta dólares para a família Phelps.

                O romance não expressa só a rebelião, mas a grande mudança de caráter e conduz este crescimento para o coração do garoto. Sem dúvida nenhuma, Huck é esse garoto, e de acordo com Leo MARX (1961, p. 207):

After Huck’s escape from his “pap”, the drift of the action, like that of the Mississipi’s current, is away from St. Petersburg. Huck leaves Tom and the A-rabs behind, along with the Widow, Miss Watson, and all the pseudo-religious ritual in which Nice boys must partake. The return, in the end, to the mood of the beginning therefore means defeat – Huck’s defeat; to return to that mood joyously is to potray defeat in the guise of victory.
(Depois da fuga de Huck de seu ”pai”, a tendência da ação, igual à correnteza do Mississipi, é fugir de St. Peterburg. Huck deixa para trás Tom e os A-rabs, mais adiante a Viúva, Miss Watson, e todos os rituais pseudo-religiosos dos quais os bons garotos devem participar. A volta, no final, ao modo do início, entretanto, significa a derrota de Huck; voltar a esse modo alegremente é retratar a derrota sob a forma de vitória).

                Agora vem a pergunta inevitável: Quem realmente foi derrotado em The Adventures of Hucleberry Finn? Tanto quanto a derrota moral é concebida, é inegavelmente verdade que Huck é golpeado pelas regras da sociedade. Mas, as mortes de Miss Watson e Pap trazem a liberdade real para ele e Jim: Jim é livre das correntes da escravidão de acordo com o testamento de Miss Watson e Jim diz a Huck que Pap era o homem morto que eles viram na balsa. Então o que parecia ser uma derrota aparente tornou-se um triunfo final, de acordo com os princípios da lei e fazendo uso da razão.
                Esse triunfo final de Huck Finn, não é o mesmo dedicado ao moleque Ricardo. O governo desejoso de acabar com a anarquia operária, mandou manter os líderes na prisão:

O Dr. Pestana, metido em prisão por umas horas, teve a mulher para gritar por ele, habeas-corpus que o livrasse dos constrangimentos. Os chefes operários iriam para Fernando. Lá estavam os ladrões e criminosos curtindo penas. Para lá iriam os operários Sebastião e o povo da padaria de Seu Alexandre estava na lista para seguirem. Diziam os jornais que Sebastião era um perigoso agitador e a padaria onde ele trabalhava um foco terrível. Fernando de Noronha com eles. (p . 189)

                E Ricardo? Fugiu do engenho Santa Rosa, sonhando com uma nova oportunidade para si. Em tão pouco tempo ele metera-se nas mais severas encrencas e com pessoas erradas:

Os negros iriam para Fernando. Jesuíno e Ricardo na ilha com ladrões e criminosos. O jardineiro olhava o chão pensando nos homens. O que tinham feito ele demais? Jesuíno e Ricardo não mataram ninguém, não tiraram o alheio. [...] Que fizeram os negros? Que fizeram Ricardo e Jesuíno? Mataram? Roubaram? O governo mandava os infelizes pra Fernando. (p. 190-192)

                José Lins, na sua época, tentou através desse romance Moleque Ricardo (1935), conscientizar toda a sua geração que passiva ou ativamente lutava por melhorar as condições  de vida e a retratação desses acontecimentos transpostos para a ficção superaram as expectativas no tocante ao desempenho de seus personagens. São apontadas pelo autor as mais variadas experiências humanas dentro de um universo literário completo e definido.

Referências Bibliográficas:

BUTRYM, Alexander J. Mark Twain's The Adventures of Huckleberry Finn and related works. New York: Monarch Press, 1977.   122p.
GAMA e MELO, Virginius da. O romance político do Recife. In: COUTINHO, Eduardo F. et alii. José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.  474p.
HANSEN, Chadwick. The character of Jim and the ending of Huckleberry Finn. Massachusetts Review, 1963.  p.45-66.
MELO, José Octávio de Arruda. De 1930 aos nossos dias. In: Independência - tempo histórico e nacionalidade. Recife: Indústria Gráfica do Recife Ltda., 1974.  114p.
REGO, José Lins do. Moleque Ricardo. 17ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.  356p. 
TWAIN, Mark. The Adventures of Huckleberry Finn. In: Sculley Bradley Ed. The American Tradition in Literature. New York: W. W. Norton & Company Inc., 1962.  1576p.


[1] A tradução da pesquisa que figura entre parênteses é da responsabilidade da autora,  pertencente à ABRATES - Associação Brasileira de Tradutores, com Carteira Efetiva - Matrícula Nº 655.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma Análise da Intertextualidade em José Lins do Rego nos Romances do “Ciclo da Cana-de-Açúcar” (Parte I)

Profª. Drª. Bárbara de Fátima.



1- Paralelismo entre os romances Bangüê (Old Plantation) e O Amante de Lady Chatterley (Lady Chatterley’s Lover).

                No romance de José Lins do Rego (1901-1957), Bangüê (1934), o autor apresenta o relacionamento de Carlos de Melo com Maria Alice, como símbolo da maior sensualidade entre os dois amantes, cuja geografia do meio ambiente é o palco que presencia e é referenciada como lugares de relação ilícita e que também posiciona todo o preconceito do lugar em relação a estes lugares de encontros. Neste romance, o autor envolve o leitor com descrições que não deixam dúvidas com relação a este forte sentimento que uniu os dois amantes; O autor, simplesmente, agindo como um Deus, capaz de realizar os mais preciosos desejos, respondeu eficazmente o pedido de Carlos quando o mesmo ensimesmado pensava:

O amor que eu conhecia nunca me elevou nem me rebaixou, aluindo-me das minhas bases. Que secura era aquela minha? No íntimo me via pequeno demais, menor que todo mundo. Pedia que me aparecesse uma mulher que me arrastasse onde não quisesse ir. Uma em que eu pensasse noite e dia, uma mulher cuja carne cheirasse até longe. E me desse noites em claro e coragem viril de sacrifícios e loucuras. Mulheres como aquelas de romance, que fossem capazes de torcer o destino, de inflamar, de estontear.  (p. 43)

               O autor demonstra através da natureza que entre Carlos e Alice nada representava o pecado, a indisciplina moral, só a felicidade. E sempre que eles estavam juntos:

Pela manhã, depois do leite, saímos uma vez a passear pela estrada. O caminho feito para um casal de namorados, de tanto cheirar o muçambê e tanto enfeite de trepadeiras pelas estacas do cercado. Gostava de chamar atenção para as coisas bonitas que via. Os paus-d’arcos lá em cima, na mata, mostravam-se nas suas flores arroxeadas. No meio do verde intenso pareciam aparamentados para uma missa pontifical. O sol novo caía sobre o canavial, com ternura. Quem diria que ao meio-dia abrasasse tanto, impiedoso para as caninhas novas. (p. 58)

      A comparação que o autor fez do amor como sendo uma escravidão que machuca que esmaga, mas que fortalecia cada vez mais a união de Carlos e Alice:

E que coisa gostosa era esta escravidão. Inventava passeios. Nós dois andávamos pelo Santa Rosa vendo tudo com seus olhos. Tudo o que ela achava bonito eu achava ainda mais. Nuvens de periquitos passavam perto de nós, colorindo o chão onde passavam. Anuns, reluzentes, de pretos, andavam de bandos também. (p. 61)

                Uma verdadeira harmonia entre os homens, os animais, as coisas. A natureza sendo uma personagem forte e audaciosa extasiava a tudo e a todos com a profundidade de um grande sentimento.

Eu não lhe sabia dizer o nome das flores silvestres que encontrávamos no caminho. Nem parecia criado ali. Gabava-me a vida no campo. Não sabia por que existia gente falando mal daquela delícia de um viver tranqüilo, sem ruídos impertinentes, sem agitação e preocupações aborrecidas. Peguei-lha a mão para pular um riacho. E fôra a primeira vez que encontrava a sua carne. Eram quentes as suas mãos. Devia ser quente todo o seu corpo, as suas pernas, as suas coxas, aqueles seios de mulher sem filho, intumescidos de vida. Como seria delicioso um beijo na sua boca, na sua boca sem tinta, naqueles seus lábios meio grossos, com arrebique de provocação!  (p.   62)

                Analisando o trecho anterior, observamos o quanto a natureza é mística e sagaz na sua influência junto ao comportamento humano, tem uma dualidade só pertinente a Deus. Demonstra pureza, mas também animalidade, o coração se sobrepõe à racionalidade humana, o mal foge devido à sua impossibilidade de instalação.

                A mata com seus mistérios, também formava uma imagem que culminaria com a presença dos amantes lado a lado. O amor dava a Carlos um novo alento à sua vida. Tudo à sua volta passou a ter uma nova conotação, um novo significado. Ele sentiu a necessidade de unir a pessoa de Alice ao trabalho que se processava no engenho. Para Carlos seria como a descoberta de um trabalho sendo realizado pela primeira vez:

O engenho estava moendo. E todo aquele trabalho servil me deslumbrou como se eu nunca tivesse visto aquilo. As tachas ferviam, as talhadeiras cortavam a espuma dourada do mel. E a fumaça gostosa, cheirando. À menor coisa que via, pensava em Maria Alice. Ela devia ver também. (p. 66)

                Percebemos através das descrições de José Lins que o casal Carlos e Alice  estão sempre em contato com a natureza, com o campo a céu aberto, em lugares onde o enleio e o proibido estão sempre a espreitar para dar lugar ao romance latente entre eles. Tudo era motivo, uma desculpa para estarem juntos sem que a presença das pessoas viesse a perturbar a paz e a necessidade do estarem a sós:

No outro dia, depois do leite, saímos os dois a passeio. Ela pretextou ver outra vez a olaria de Maria Pitú. Fomos andando, sem falar. Eu e ela calados. Estava linda, naquele ar matinal, com o sol na sua cabeça castanha e o cangote de penugem. Andávamos calados. O engenho, àquela hora, já estaria na sua segunda têmpera e os carros de boi passavam por nós chiando. Cambiteiros com os burros na frente corriam com os animais selados do peso da carga. Ouvia-se o barulho da moenda quebrando a cana e o ruído metálico dos dentes da roda gigante. O cheiro da bagaceira ia longe. (p. 67-8)    

                Mas, a perda deste amor aos poucos irá influenciar no comportamento de Carlos:

Estas chuvas, porém, eram de pouco tempo. Vinham somente para ajudar os cajueiros a florir. Recendiam eles pelas estradas, cheirando mais do que as cajazeiras. Maria Alice me dizia que estávamos nos despedindo, nos últimos dias do seu sonho. E de noite o jasmim-laranja do portão entrava de janela adentro, nos procurando com o seu perfume de felicidade, de amor casto. Parecia que estava plantado dentro do quarto. Aquilo só podia ser mesmo para se acabar, aquele viver de canto árabe. Dera-me gosto pela vida, dera-me vigor de homem, uma vontade firme de procriar, de me sentir além de mim mesmo. Desejava que ela criasse barriga, tivesse um filho meu bulindo em suas entranhas. (p. 84-5)

                É a sensação de perda que faz com que Carlos perca a sua super-força, a sua implacável ânsia de viver, para transformar a tudo e a todos. E agora como reagir a esta perda? Só as lembranças dos seus momentos com Maria Alice não seriam suficientes para desterrá-lo daqueles momentos de poderosa introspecção. Seria o mesmo que voltar ao estado inicial de inércia total. É assim que SOBREIRA (1971, p. 42) define, porque,

Há momentos de comovedora beleza, em que a natureza se transfigura, pela boca do narrador, para emoldurar o momento proibido.  Como há instantes do mais turvo e negro desespero, como aquele em que Carlos de Melo fica diante do oratório sem poder rezar, sem saber o que dizer: Ou tudo se resume, na expressão cheia de amargor e pitoresco, na noite em que o marido de Maria Alice vem buscá-la, deixando Carlos de Melo na sua raiva impotente, ouvindo os menores rumores e percebendo, na solidão do quarto de solteiro, que o diabo do jasmineiro cheirava como uma prostituta.  

                A perda do objeto amado, Maria Alice, por Carlos também influenciou no bom andamento do engenho. E uma sensação de torpor o impedia de agir, de procurar contornar os problemas e de querer voltar a viver. Até a natureza sentiu e emudeceu:

E saí para a horta. Lá dentro havia mato do tamanho das fruteiras; os leirões da velha Sinhazinha, ciscados de galinhas, o jirau dos craveiros apodrecendo. Há tempos que não estava por ali. E tudo naquele abandono. Lá estava o umbuzeiro de Maria Alice, muito verde, de copa redonda, rastejando pelo chão. Ali por debaixo, Maria Alice me alisava os cabelos, ficava eu com a cabeça em seu colo. E uma saudade perniciosa da mulher me pegou de jeito.  (p. 143)

                Em contraponto, temos a influência de David Herbert LAWRENCE (1855-1930) novelista inglês, cujo romance Lady Chatterley’s Lover (1928) foi intertextualizado por José Lins em Bangüê (1934), afirmando que, ao contrário de Lady Chatterley:

[...] falta a essa mulher, também desintegrada, a coragem absoluta de Lady Chatterley. Maria Alice volta para o marido, a quem não ama. E Carlos de Melo, mais aniquilado do que nunca pelo sentimento de divisão, não mais encontrará um ‘calor humano’ que lhe restitua, com o impulso vital, o entusiasmo e o ânimo da ação. É nessa fatalidade sexual que reside, evidentemente, a causa real dos seus fracassos sucessivos. O sexo emperra-lhe os movimentos. Os óleos da luxúria amolecem-lhe os nervos.  (p. 264)

     A diferença entre a voluptuosidade do amor e da sensualidade entre Carlos e Maria Alice em Bangüê (1934) e Constance (Connie) e Mellors em Lady Chatterley’s Lover (1928) é que ao contrário do romance de Carlos e Maria Alice que se passa quase que totalmente em contato com a natureza, a céu aberto, o de Connie e Mellors se passa na cabana, na qual ele habita como empregado do marido de Connie, o senhor Clifford.

‘Você que ir ao galpão?’ – perguntou ele, com a voz sossegada e neutra. E fechando a mão sobre o braço dela, sem esforço, ele a colocou de pé e a levou calmamente até o galpão, não a soltando até que estivesse lá dentro. Então ele afastou a poltrona e a mesa e apanhou um cobertor marrom de soldado no armário de ferramentas, abrindo-o no assoalho. Ela olhava para o rosto dele, e permanecia imóvel. O rosto dele estava pálido, sem expressão, como o de um homem que se submetesse ao destino. – ‘Deite aqui’ – disse ele meigamente. E fechou a porta. O galpão ficou escuro, muito escuro. (p. 129)

                Connie tinha o seu marido incapacitado, o senhor Clifford havia sofrido nos horrores da guerra como um soldado forte e valente, mas voltara para casa abatido e paralítico. Assim, Connie teve que mudar os seus sonhos e também substituir as suas ânsias de mulher por outras.

Porém, por artes do mistério, fora uma experiência visionária que a atingira no centro do corpo. Ela vira as calças desajeitadas e frouxas sobre os músculos brancos, puros e delicados, os ossos protuberantes; e a sensação de solitude, da criatura totalmente a sós, a dominara: a nudez perfeita, alva, solitária, de uma criatura que vive só, intimamente só; e, mais, a beleza da criatura humana em seu isolamento. Não era a essência da beleza, nem o corpo da beleza, mas um bruxuleio, a chama branca e cálida de uma vida isolada revelando-se nos contornos palpáveis de um corpo físico! (p. 76)

                Os amantes Carlos e Maria Alice inventavam silenciosos passeios para fugirem dos olhares curiosos e preconceituosos do povoado da fazenda. LAWRENCE também apresenta no personagem de Mellors uma cisma contra os observadores da floresta, tentando evitar que Connie se torne vítima de insinuações grosseiras e vulgares dos olheiros de seu marido. Em verdade os pensamentos, palavras e as ações são três formas distintas de consciência, e eles estavam vivendo vidas distintas. Enquanto eles pensam, não agem, e enquanto agem não pensam. É a presença da dualidade liberdade x culpa.

Ele a encarou, matreiro.
– As pessoas vão começar a inventar coisas; você vindo aqui todas as tardes... 
– Por quê? Ele olhou para ela perplexo.
– Eu disse a você que viria. Ninguém sabe.
– Mas logo vão saber. E aí? (p. 136)
               
       Em termos religiosos, tudo o que não está de acordo com os Mandamentos da Lei de Deus está contra a Sua vontade. Assim, observamos que LAWRENCE apresenta inúmeras passagens no seu romance que perante Deus são faltas graves cometidas em nome do prazer e da sensualidade. São personagens fictícios, mas que simbolizam as atitudes e comportamentos de pessoas reais, ou algumas vezes, simbolizam coisas e lugares. O Cristianismo proporcionou uma enorme contribuição à vida social do homem que foi o Sacramento do Matrimônio. Esta ligação perpétua que hoje conhecemos, concedendo também a autonomia familiar dentro da lei. Por questões divinas, o matrimônio é inviolável pelo Estado. Dele, o homem recebeu liberdade, autoridade e independência. Segundo a Igreja, o matrimônio é um dos sete (07) sacramentos. Unidos pelo amor, comungando do sexo, inseparáveis, homem e mulher vivem em unidade até a morte. Com seus corpos incompletos criam, um corpo completo para a satisfação terrena, harmoniosa em sua plenitude.

      LAWRENCE (ibidem, p. 339) foge dos estatutos eclesiais, porque considera apenas o homem e a mulher como dois seres humanos, sem qualquer vínculo matrimonial legal que os uma. E afirma que:

Dois rios de sangue são o homem e a mulher, duas correntes eternas distintas que têm o poder de se tocar e comungar, e, portanto o poder da renovação, da reconstrução um do outro sem qualquer rompimento de seus limites sutis, sem qualquer mistura, sem qualquer perturbação. E o falo é o elo que une os dois rios, que faz dos dois rios uma unidade, e produz de sua dualidade um circuito único, para sempre. E isto, esta unidade concretizada gradualmente ao longo de uma vida a dois, é a realização mais sublime do tempo ou da eternidade. Dela nascem todas as coisas humanas: os filhos, a beleza e tudo o que há de bem-feito: todas as verdadeiras criações da humanidade. E tudo o que sabemos da vontade de Deus é que Ele quis a existência desta unidade, a ser satisfeita no correr de uma vida, esta unidade dentro da grande corrente sangüínea dupla da humanidade.

                Movidas pela atração ou pelo desejo, as pessoas muitas vezes desviam-se de seus preceitos de dignidade. E podemos observar esta volta parcial à sua realidade pelo personagem de Lady Chatterley, ou seja, Connie:

Naquela breve morte de verão ela aprendeu uma vida. Ela teria jurado que a mulher morreria de vergonha. Pelo contrário, morreu a vergonha.  A vergonha que é o medo: o medo orgânico profundo, o velho, o ancestral medo físico que espreita nas origens físicas de todos nós, e que só pode ser afugentado pelo fogo sensual, foi enfim expulso e devastado pela caçada fálica do homem, e ela própria chegou bem próxima ao coração da selva. Ela sentia, agora, que atingia o leite primeiro da sua natureza, e que perdera a essência da vergonha. Ela se tornara o seu eu sensual, nu e imune à vergonha. Ela vivia uma sensação de triunfo, quase de vanglória. Sim! Era assim! Era isto era a vida! Era assim o íntimo do ser humano! Nada mais restava para ocultar, nada mais do que sentir vergonha. Ela partilhara a sua nudez total com um homem, um outro ser. (p. 266)

                Há no confronto destes dois romances, o alvorecer da modernidade, a máquina substituindo o homem e a sua influência em seu comportamento pessoal ou em comunidade. José Lins, em Bangüe (1934), nos descreve um Carlos  de Melo que tornara-se um ser humano pouco sensível às afetações que o amor lhe trouxera, passando, desta forma, a se dedicar a bens bem mais palpáveis e materialistas.

Não me sentia mal no Santa Rosa, podia viver ali todos os meus dias. Por causa nenhuma do mundo trocaria o meu engenho, mas tudo conspirava contra essa paz que me dera o domínio sobre uma causa que era minha. A propriedade me satisfazia completamente. Maria Alice, no melhor da história, rompera um laço que me ligava com a sua carne gostosa. Era de outro. (p. 129)

                Neste romance, Maria Alice volta para o marido dela deixando Carlos de Melo num estado desesperador. LAWRENCE foi mais atrevido, não se importando em respeitar os sagrados laços do matrimônio, faz com que Connie opte pelo amante ardoroso e apaixonado, do qual ela espera um filho:

 – ‘Aquele pé-rapado! Aquele imbecil arrogante! Aquele mal-criado estúpido! E se entregando a ele este tempo todo! Você ainda morava aqui e ele era um dos meus empregados, Connie! Meu Deus, meu Deus! Será que não existem limites para a devassidão feminina?’     Ele estava fora de si com tanta ira. Ela já previa e não se espantou.    – ‘Você não teria vergonha de admitir que carrega o filho de um safado daqueles?’ – ‘Nenhuma! Eu vou ter um filho dele.’ (p. 311)

     Mas os reveses da vida abalaram e muito a fortaleza de Carlos de Melo em Bangüe (1934), ele mudou o seu pensamento e o seu agir covardemente e de maneira vil:

Queriam o engenho, a água boa, as várzeas, as matas do Santa Rosa. Um dia, porém, entrou-me a salvação dentro de casa. Não foi o diabo chegando de cavalo, com arreios de prata, e dente de ouro, belo como um príncipe a me oferecer tudo o que eu desejasse. Mas foi a cupidez humana, que é a mesma coisa. Tio Juca parou o seu automóvel na porta do Santa Rosa. Para conversar comigo. Viera comprar o meu engenho. A família se unira para a fundação de uma usina. Tinham zona vasta, mas o Santa Rosa era essencial porque dispunha de águas corrente na s proximidades. Ele pagaria as letras vencidas e me daria cem contos livres. (p. 208-9)

      A liberdade de viver no engenho Santa Rosa onde não havia discriminação entre os moradores e nem entre os trabalhadores. Era um mundo à parte, cheio de harmonia, sem ilusões. Por medo e covardia, Carlos de Melo, ignorando todos estes valores, entregou tudo isso aos ambiciosos:

Agora ia sair para sempre do Santa Rosa. Ali sofrera muito nos últimos tempos. Me degradara mesmo, fizera filhos em mulheres infelizes, dera em Pinheiro por causa de uma miséria, dormira com medo de cabras, de nada, de sombras. De dentro da rede, naquela manhã de minha partida, sentia que não podia fazer mais nada. Fracassara completamente. Deixara o Santa Rosa para os outros. João Rouco, João de Joana, Manoel Severino, todos ficavam para o eito da usina. A esteira da usina, os trens, os arados, as fornalhas precisavam de gente. Gente que não dormisse, que não fizesse roçado, que não plantasse algodão. (p. 211)

                Daí, a antítese maior entre engenho x usina: a liberdade que os seus moradores tinham, sem que isso representasse uma escravidão. Tudo era livre no engenho, os bichos, as pessoas:

Passaria primeiro pelos casebres dos meus moradores. Mulheres, àquela hora pegadas na enxada, limpando mato. As várzeas desocupadas. O grande engenho entregue aos foreiros. Em cada casa um cercado, porcos, gente vivendo do que era seu. (p. 184)

    Com a chegada da usina, a plantação seria diversificada com a troca do plantio da cana-de-açúcar pela do algodão; enfim, tudo mudaria:

Um administrador qualquer encheria de camumbembagem as salas do Santa Rosa. Era um fim como o de seu Lula. Ao menos, o velho do Santa Fé fora até o fim. Só lhe arrancaram do seu engenho no seu caixão de defunto. E, no entanto, um moço de vinte e poucos anos desertava, seria enxotado dos seus domínios herdados, por imperícia, falta de coragem, medo dos outros, de Marreira, da usina. (p. 184-5)

                A usina com a sua presença e seus mecanismos mostrava como o seu egoísmo tolhia todos os direitos das pessoas e lançava sobre eles somente os deveres:

Os canaviais subiam e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Era cana e só cana. A usina só precisava daquilo. Para que moradores com roçado, crianças do gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os pequenos que se defendiam no algodão.  (p. 184)

                Ao retornar ao engenho Santa Rosa, Carlos de Melo apresentava-se formado em Direito, porém, sem nenhuma perspectiva de vida e não pretendendo resolver o problema de sua débil ociosidade. Segundo GOMES (1991, p. 264):

O plano mais culminante de interesse humano, em Bangüê, assenta, com efeito, na diversidade desses caracteres; o avô, um antigo senhor de engenho que, embora trôpego de ancianidade e quase cego, ainda mantém o domínio absoluto do seu feudo, e o neto, em que chegando a vez de o substituir rola, de fracasso em fracasso, com a sua bagagem de conhecimentos frívolos, por lhe minguarem as virtudes essenciais de seus antepassados e, principalmente, aquele instinto tenaz de propriedade em que se estribavam senhores de engenho.

                Da mesma forma SOBREIRA (1971, p. 42) reafirma o estilo de apresentação definindo:

O retrato de Carlos de Melo, o homem fraco, sem vontade de querer, é o teste definitivo do romancista, do criador de almas. [...] Mesmo os impulsos sexuais, violentos e dominadores, só servem para ressaltar a pobreza dos gestos ou altos decisivos: falta-lhe até o requisito da animalidade. Sua ausência de vontade é maior do que o sentimento ou o instinto. Revolta-nos sua conduta, sua covardia, sua inexpressividade.

       Acima de tanta negatividade no seu caráter, Carlos de Melo retorna à vida e à realidade por causa da energia positiva que o amor lhe envolve. É este sentimento que lhe dá um inusitado desprendimento que culmina com o êxtase da animalidade e que o faz reagir, pelo menos, temporariamente. É por isso, que GOMES (ibidem, p. 264) afirma que:

Essa influência negativa, desenvolvida pela ociosidade, ascendeu-lhe, furiosamente, o ancestralismo sexual. A sua infirmeza moral encontrou, a princípio, uma compensação se lhe transforma em angústia, a angústia inenarrável de desintegração da personalidade vital, para a qual não encontrará solução definitiva. A única mulher que lhe restabelece a unidade pertence a outro.

                LAWRENCE no seu romance Lady Chatterley’s Lover (1928) também restaura a paz interior e a serenidade a um homem solitário, Mellors:

Ele recuou enquanto ela penetrava na noite, silhueta contra o palor do céu. Quase com amargura ele a viu sumir. Ela o religava à vida, quando ele queria ficar só. Ela lhe custara a privacidade dolorosa de um homem que, afinal, queria apenas ficar só. Ele se voltou para a floresta escura. Tudo estava calmo; a lua se pusera. [...] Luzes elétricas ofuscantes e perversas de Stacks Gate! Havia uma aura indefinível de maldade nelas! E todo o horror instável da noite industrial de Midlands. Ele chegava a ouvir os motores dos guindastes de Stacks Gate qua abaixavam ao fundo do poço os mineiros das sete horas. A mina trabalhava em três turnos. (p. 132)

      A apreensão de Mellors era bastante natural. A presença de Connie em sua vida significava a sua abertura para o mundo exterior, seria o fim de sua reclusão voluntária:

Ele desceu outra vez para a treva e a reclusão do bosque. Porém ele sabia que a reclusão do bosque era ilusória. Os ruídos industriais rompiam a solidão; as luzes resplandecentes, embora invisíveis, zombavam dela. O homem não podia ser um indivíduo privado e só. O mundo não permitia mais a existência de ermitãs. E agora ele assumira a mulher, e impusera a si um novo ciclo de dor e ruína. Ele sabia por experiência própria o que isso significava. (p. 132)

                O industrialismo avançava de forma avassaladora causando certa melancolia em Mellors, que se sentia impotente para enfrentar os seus avanços:

Não era culpa da mulher, nem culpa do amor, tampouco do sexo. A culpa estava ali, por toda parte, nas luzes elétricas malignas e no chocalhar diabólico dos motores. Ali, no mundo da cobiça mecânica, com seus mecanismos de cobiça mecanizada, faiscando no calor das luzes e metais, rosnando no tráfego, ali habitava o imenso mal, pronto para destruir tudo o que não se harmonizasse. Logo ele destruiria o bosque, e as campainhas não brotariam mais. Todas as coisas vulneráveis estavam condenadas a perecer sob o corrimento e a laminação do aço. (p. 132)

   
                O pior era sentir que as mudanças não se verificariam apenas na destruição da natureza, mas também e, principalmente, as pessoas que se tornam frias, nervosas e incapazes de se relacionarem de maneira afetiva coerentemente. Mellors teme por Connie, já que ela pertence a este mundo desvairado pelo alvorecer da modernidade:


Ele pensou em Connie com uma ternura infinita. Pobre menina abandonada, ela era melhor do que imaginava. Ah, tão melhor, pela sociedade impiedosa onde vivia. Pobre menina, que tinha também um pouco da vulnerabilidade dos jacintos silvestres; ela não era toda emborrachada e platinada feito as moças modernas. Eles a liquidariam! Era certo como a vida: eles a liquidariam como liquidavam todas as formas ternas de vida. Ternas! De algum modo ela era terna, terna com a ternura dos jacintos em crescimento, algo que desaparecera das mulheres de celuloide de hoje. Mas ele a protegeria com o seu coração enquanto pudesse. Enquanto pudesse, antes que o insensível mundo de ferro e o Mamona da cobiça não os liquidasse a ambos, tanto a ela quanto a ele. (p. 132)


Referências Bibliográficas:

GOMES, Eugênio. Banguê. In: COUTINHO, Eduardo et alii. José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.  474p.
LAWRENCE, David Herbert. O Amante de Lady Chatterley. Tradução de Fernando B. Ximenes. Rio de Janeiro: Editora Technoprint, 1985.   349p.
REGO, José Lins do. Banguê. 8ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.  338p.
SOBREIRA, Ivan Bechara. O romance de José Lins do Rego. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1971.  182p.