Revista do NEFILLI

Núcleo de Estudos Filológicos, Lingüísticos e Literários – NEFILLI

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CONTO E ENCANTO

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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma Análise da Intertextualidade em José Lins do Rego nos Romances do “Ciclo da Cana-de-Açúcar” (Parte I)

Profª. Drª. Bárbara de Fátima.



1- Paralelismo entre os romances Bangüê (Old Plantation) e O Amante de Lady Chatterley (Lady Chatterley’s Lover).

                No romance de José Lins do Rego (1901-1957), Bangüê (1934), o autor apresenta o relacionamento de Carlos de Melo com Maria Alice, como símbolo da maior sensualidade entre os dois amantes, cuja geografia do meio ambiente é o palco que presencia e é referenciada como lugares de relação ilícita e que também posiciona todo o preconceito do lugar em relação a estes lugares de encontros. Neste romance, o autor envolve o leitor com descrições que não deixam dúvidas com relação a este forte sentimento que uniu os dois amantes; O autor, simplesmente, agindo como um Deus, capaz de realizar os mais preciosos desejos, respondeu eficazmente o pedido de Carlos quando o mesmo ensimesmado pensava:

O amor que eu conhecia nunca me elevou nem me rebaixou, aluindo-me das minhas bases. Que secura era aquela minha? No íntimo me via pequeno demais, menor que todo mundo. Pedia que me aparecesse uma mulher que me arrastasse onde não quisesse ir. Uma em que eu pensasse noite e dia, uma mulher cuja carne cheirasse até longe. E me desse noites em claro e coragem viril de sacrifícios e loucuras. Mulheres como aquelas de romance, que fossem capazes de torcer o destino, de inflamar, de estontear.  (p. 43)

               O autor demonstra através da natureza que entre Carlos e Alice nada representava o pecado, a indisciplina moral, só a felicidade. E sempre que eles estavam juntos:

Pela manhã, depois do leite, saímos uma vez a passear pela estrada. O caminho feito para um casal de namorados, de tanto cheirar o muçambê e tanto enfeite de trepadeiras pelas estacas do cercado. Gostava de chamar atenção para as coisas bonitas que via. Os paus-d’arcos lá em cima, na mata, mostravam-se nas suas flores arroxeadas. No meio do verde intenso pareciam aparamentados para uma missa pontifical. O sol novo caía sobre o canavial, com ternura. Quem diria que ao meio-dia abrasasse tanto, impiedoso para as caninhas novas. (p. 58)

      A comparação que o autor fez do amor como sendo uma escravidão que machuca que esmaga, mas que fortalecia cada vez mais a união de Carlos e Alice:

E que coisa gostosa era esta escravidão. Inventava passeios. Nós dois andávamos pelo Santa Rosa vendo tudo com seus olhos. Tudo o que ela achava bonito eu achava ainda mais. Nuvens de periquitos passavam perto de nós, colorindo o chão onde passavam. Anuns, reluzentes, de pretos, andavam de bandos também. (p. 61)

                Uma verdadeira harmonia entre os homens, os animais, as coisas. A natureza sendo uma personagem forte e audaciosa extasiava a tudo e a todos com a profundidade de um grande sentimento.

Eu não lhe sabia dizer o nome das flores silvestres que encontrávamos no caminho. Nem parecia criado ali. Gabava-me a vida no campo. Não sabia por que existia gente falando mal daquela delícia de um viver tranqüilo, sem ruídos impertinentes, sem agitação e preocupações aborrecidas. Peguei-lha a mão para pular um riacho. E fôra a primeira vez que encontrava a sua carne. Eram quentes as suas mãos. Devia ser quente todo o seu corpo, as suas pernas, as suas coxas, aqueles seios de mulher sem filho, intumescidos de vida. Como seria delicioso um beijo na sua boca, na sua boca sem tinta, naqueles seus lábios meio grossos, com arrebique de provocação!  (p.   62)

                Analisando o trecho anterior, observamos o quanto a natureza é mística e sagaz na sua influência junto ao comportamento humano, tem uma dualidade só pertinente a Deus. Demonstra pureza, mas também animalidade, o coração se sobrepõe à racionalidade humana, o mal foge devido à sua impossibilidade de instalação.

                A mata com seus mistérios, também formava uma imagem que culminaria com a presença dos amantes lado a lado. O amor dava a Carlos um novo alento à sua vida. Tudo à sua volta passou a ter uma nova conotação, um novo significado. Ele sentiu a necessidade de unir a pessoa de Alice ao trabalho que se processava no engenho. Para Carlos seria como a descoberta de um trabalho sendo realizado pela primeira vez:

O engenho estava moendo. E todo aquele trabalho servil me deslumbrou como se eu nunca tivesse visto aquilo. As tachas ferviam, as talhadeiras cortavam a espuma dourada do mel. E a fumaça gostosa, cheirando. À menor coisa que via, pensava em Maria Alice. Ela devia ver também. (p. 66)

                Percebemos através das descrições de José Lins que o casal Carlos e Alice  estão sempre em contato com a natureza, com o campo a céu aberto, em lugares onde o enleio e o proibido estão sempre a espreitar para dar lugar ao romance latente entre eles. Tudo era motivo, uma desculpa para estarem juntos sem que a presença das pessoas viesse a perturbar a paz e a necessidade do estarem a sós:

No outro dia, depois do leite, saímos os dois a passeio. Ela pretextou ver outra vez a olaria de Maria Pitú. Fomos andando, sem falar. Eu e ela calados. Estava linda, naquele ar matinal, com o sol na sua cabeça castanha e o cangote de penugem. Andávamos calados. O engenho, àquela hora, já estaria na sua segunda têmpera e os carros de boi passavam por nós chiando. Cambiteiros com os burros na frente corriam com os animais selados do peso da carga. Ouvia-se o barulho da moenda quebrando a cana e o ruído metálico dos dentes da roda gigante. O cheiro da bagaceira ia longe. (p. 67-8)    

                Mas, a perda deste amor aos poucos irá influenciar no comportamento de Carlos:

Estas chuvas, porém, eram de pouco tempo. Vinham somente para ajudar os cajueiros a florir. Recendiam eles pelas estradas, cheirando mais do que as cajazeiras. Maria Alice me dizia que estávamos nos despedindo, nos últimos dias do seu sonho. E de noite o jasmim-laranja do portão entrava de janela adentro, nos procurando com o seu perfume de felicidade, de amor casto. Parecia que estava plantado dentro do quarto. Aquilo só podia ser mesmo para se acabar, aquele viver de canto árabe. Dera-me gosto pela vida, dera-me vigor de homem, uma vontade firme de procriar, de me sentir além de mim mesmo. Desejava que ela criasse barriga, tivesse um filho meu bulindo em suas entranhas. (p. 84-5)

                É a sensação de perda que faz com que Carlos perca a sua super-força, a sua implacável ânsia de viver, para transformar a tudo e a todos. E agora como reagir a esta perda? Só as lembranças dos seus momentos com Maria Alice não seriam suficientes para desterrá-lo daqueles momentos de poderosa introspecção. Seria o mesmo que voltar ao estado inicial de inércia total. É assim que SOBREIRA (1971, p. 42) define, porque,

Há momentos de comovedora beleza, em que a natureza se transfigura, pela boca do narrador, para emoldurar o momento proibido.  Como há instantes do mais turvo e negro desespero, como aquele em que Carlos de Melo fica diante do oratório sem poder rezar, sem saber o que dizer: Ou tudo se resume, na expressão cheia de amargor e pitoresco, na noite em que o marido de Maria Alice vem buscá-la, deixando Carlos de Melo na sua raiva impotente, ouvindo os menores rumores e percebendo, na solidão do quarto de solteiro, que o diabo do jasmineiro cheirava como uma prostituta.  

                A perda do objeto amado, Maria Alice, por Carlos também influenciou no bom andamento do engenho. E uma sensação de torpor o impedia de agir, de procurar contornar os problemas e de querer voltar a viver. Até a natureza sentiu e emudeceu:

E saí para a horta. Lá dentro havia mato do tamanho das fruteiras; os leirões da velha Sinhazinha, ciscados de galinhas, o jirau dos craveiros apodrecendo. Há tempos que não estava por ali. E tudo naquele abandono. Lá estava o umbuzeiro de Maria Alice, muito verde, de copa redonda, rastejando pelo chão. Ali por debaixo, Maria Alice me alisava os cabelos, ficava eu com a cabeça em seu colo. E uma saudade perniciosa da mulher me pegou de jeito.  (p. 143)

                Em contraponto, temos a influência de David Herbert LAWRENCE (1855-1930) novelista inglês, cujo romance Lady Chatterley’s Lover (1928) foi intertextualizado por José Lins em Bangüê (1934), afirmando que, ao contrário de Lady Chatterley:

[...] falta a essa mulher, também desintegrada, a coragem absoluta de Lady Chatterley. Maria Alice volta para o marido, a quem não ama. E Carlos de Melo, mais aniquilado do que nunca pelo sentimento de divisão, não mais encontrará um ‘calor humano’ que lhe restitua, com o impulso vital, o entusiasmo e o ânimo da ação. É nessa fatalidade sexual que reside, evidentemente, a causa real dos seus fracassos sucessivos. O sexo emperra-lhe os movimentos. Os óleos da luxúria amolecem-lhe os nervos.  (p. 264)

     A diferença entre a voluptuosidade do amor e da sensualidade entre Carlos e Maria Alice em Bangüê (1934) e Constance (Connie) e Mellors em Lady Chatterley’s Lover (1928) é que ao contrário do romance de Carlos e Maria Alice que se passa quase que totalmente em contato com a natureza, a céu aberto, o de Connie e Mellors se passa na cabana, na qual ele habita como empregado do marido de Connie, o senhor Clifford.

‘Você que ir ao galpão?’ – perguntou ele, com a voz sossegada e neutra. E fechando a mão sobre o braço dela, sem esforço, ele a colocou de pé e a levou calmamente até o galpão, não a soltando até que estivesse lá dentro. Então ele afastou a poltrona e a mesa e apanhou um cobertor marrom de soldado no armário de ferramentas, abrindo-o no assoalho. Ela olhava para o rosto dele, e permanecia imóvel. O rosto dele estava pálido, sem expressão, como o de um homem que se submetesse ao destino. – ‘Deite aqui’ – disse ele meigamente. E fechou a porta. O galpão ficou escuro, muito escuro. (p. 129)

                Connie tinha o seu marido incapacitado, o senhor Clifford havia sofrido nos horrores da guerra como um soldado forte e valente, mas voltara para casa abatido e paralítico. Assim, Connie teve que mudar os seus sonhos e também substituir as suas ânsias de mulher por outras.

Porém, por artes do mistério, fora uma experiência visionária que a atingira no centro do corpo. Ela vira as calças desajeitadas e frouxas sobre os músculos brancos, puros e delicados, os ossos protuberantes; e a sensação de solitude, da criatura totalmente a sós, a dominara: a nudez perfeita, alva, solitária, de uma criatura que vive só, intimamente só; e, mais, a beleza da criatura humana em seu isolamento. Não era a essência da beleza, nem o corpo da beleza, mas um bruxuleio, a chama branca e cálida de uma vida isolada revelando-se nos contornos palpáveis de um corpo físico! (p. 76)

                Os amantes Carlos e Maria Alice inventavam silenciosos passeios para fugirem dos olhares curiosos e preconceituosos do povoado da fazenda. LAWRENCE também apresenta no personagem de Mellors uma cisma contra os observadores da floresta, tentando evitar que Connie se torne vítima de insinuações grosseiras e vulgares dos olheiros de seu marido. Em verdade os pensamentos, palavras e as ações são três formas distintas de consciência, e eles estavam vivendo vidas distintas. Enquanto eles pensam, não agem, e enquanto agem não pensam. É a presença da dualidade liberdade x culpa.

Ele a encarou, matreiro.
– As pessoas vão começar a inventar coisas; você vindo aqui todas as tardes... 
– Por quê? Ele olhou para ela perplexo.
– Eu disse a você que viria. Ninguém sabe.
– Mas logo vão saber. E aí? (p. 136)
               
       Em termos religiosos, tudo o que não está de acordo com os Mandamentos da Lei de Deus está contra a Sua vontade. Assim, observamos que LAWRENCE apresenta inúmeras passagens no seu romance que perante Deus são faltas graves cometidas em nome do prazer e da sensualidade. São personagens fictícios, mas que simbolizam as atitudes e comportamentos de pessoas reais, ou algumas vezes, simbolizam coisas e lugares. O Cristianismo proporcionou uma enorme contribuição à vida social do homem que foi o Sacramento do Matrimônio. Esta ligação perpétua que hoje conhecemos, concedendo também a autonomia familiar dentro da lei. Por questões divinas, o matrimônio é inviolável pelo Estado. Dele, o homem recebeu liberdade, autoridade e independência. Segundo a Igreja, o matrimônio é um dos sete (07) sacramentos. Unidos pelo amor, comungando do sexo, inseparáveis, homem e mulher vivem em unidade até a morte. Com seus corpos incompletos criam, um corpo completo para a satisfação terrena, harmoniosa em sua plenitude.

      LAWRENCE (ibidem, p. 339) foge dos estatutos eclesiais, porque considera apenas o homem e a mulher como dois seres humanos, sem qualquer vínculo matrimonial legal que os uma. E afirma que:

Dois rios de sangue são o homem e a mulher, duas correntes eternas distintas que têm o poder de se tocar e comungar, e, portanto o poder da renovação, da reconstrução um do outro sem qualquer rompimento de seus limites sutis, sem qualquer mistura, sem qualquer perturbação. E o falo é o elo que une os dois rios, que faz dos dois rios uma unidade, e produz de sua dualidade um circuito único, para sempre. E isto, esta unidade concretizada gradualmente ao longo de uma vida a dois, é a realização mais sublime do tempo ou da eternidade. Dela nascem todas as coisas humanas: os filhos, a beleza e tudo o que há de bem-feito: todas as verdadeiras criações da humanidade. E tudo o que sabemos da vontade de Deus é que Ele quis a existência desta unidade, a ser satisfeita no correr de uma vida, esta unidade dentro da grande corrente sangüínea dupla da humanidade.

                Movidas pela atração ou pelo desejo, as pessoas muitas vezes desviam-se de seus preceitos de dignidade. E podemos observar esta volta parcial à sua realidade pelo personagem de Lady Chatterley, ou seja, Connie:

Naquela breve morte de verão ela aprendeu uma vida. Ela teria jurado que a mulher morreria de vergonha. Pelo contrário, morreu a vergonha.  A vergonha que é o medo: o medo orgânico profundo, o velho, o ancestral medo físico que espreita nas origens físicas de todos nós, e que só pode ser afugentado pelo fogo sensual, foi enfim expulso e devastado pela caçada fálica do homem, e ela própria chegou bem próxima ao coração da selva. Ela sentia, agora, que atingia o leite primeiro da sua natureza, e que perdera a essência da vergonha. Ela se tornara o seu eu sensual, nu e imune à vergonha. Ela vivia uma sensação de triunfo, quase de vanglória. Sim! Era assim! Era isto era a vida! Era assim o íntimo do ser humano! Nada mais restava para ocultar, nada mais do que sentir vergonha. Ela partilhara a sua nudez total com um homem, um outro ser. (p. 266)

                Há no confronto destes dois romances, o alvorecer da modernidade, a máquina substituindo o homem e a sua influência em seu comportamento pessoal ou em comunidade. José Lins, em Bangüe (1934), nos descreve um Carlos  de Melo que tornara-se um ser humano pouco sensível às afetações que o amor lhe trouxera, passando, desta forma, a se dedicar a bens bem mais palpáveis e materialistas.

Não me sentia mal no Santa Rosa, podia viver ali todos os meus dias. Por causa nenhuma do mundo trocaria o meu engenho, mas tudo conspirava contra essa paz que me dera o domínio sobre uma causa que era minha. A propriedade me satisfazia completamente. Maria Alice, no melhor da história, rompera um laço que me ligava com a sua carne gostosa. Era de outro. (p. 129)

                Neste romance, Maria Alice volta para o marido dela deixando Carlos de Melo num estado desesperador. LAWRENCE foi mais atrevido, não se importando em respeitar os sagrados laços do matrimônio, faz com que Connie opte pelo amante ardoroso e apaixonado, do qual ela espera um filho:

 – ‘Aquele pé-rapado! Aquele imbecil arrogante! Aquele mal-criado estúpido! E se entregando a ele este tempo todo! Você ainda morava aqui e ele era um dos meus empregados, Connie! Meu Deus, meu Deus! Será que não existem limites para a devassidão feminina?’     Ele estava fora de si com tanta ira. Ela já previa e não se espantou.    – ‘Você não teria vergonha de admitir que carrega o filho de um safado daqueles?’ – ‘Nenhuma! Eu vou ter um filho dele.’ (p. 311)

     Mas os reveses da vida abalaram e muito a fortaleza de Carlos de Melo em Bangüe (1934), ele mudou o seu pensamento e o seu agir covardemente e de maneira vil:

Queriam o engenho, a água boa, as várzeas, as matas do Santa Rosa. Um dia, porém, entrou-me a salvação dentro de casa. Não foi o diabo chegando de cavalo, com arreios de prata, e dente de ouro, belo como um príncipe a me oferecer tudo o que eu desejasse. Mas foi a cupidez humana, que é a mesma coisa. Tio Juca parou o seu automóvel na porta do Santa Rosa. Para conversar comigo. Viera comprar o meu engenho. A família se unira para a fundação de uma usina. Tinham zona vasta, mas o Santa Rosa era essencial porque dispunha de águas corrente na s proximidades. Ele pagaria as letras vencidas e me daria cem contos livres. (p. 208-9)

      A liberdade de viver no engenho Santa Rosa onde não havia discriminação entre os moradores e nem entre os trabalhadores. Era um mundo à parte, cheio de harmonia, sem ilusões. Por medo e covardia, Carlos de Melo, ignorando todos estes valores, entregou tudo isso aos ambiciosos:

Agora ia sair para sempre do Santa Rosa. Ali sofrera muito nos últimos tempos. Me degradara mesmo, fizera filhos em mulheres infelizes, dera em Pinheiro por causa de uma miséria, dormira com medo de cabras, de nada, de sombras. De dentro da rede, naquela manhã de minha partida, sentia que não podia fazer mais nada. Fracassara completamente. Deixara o Santa Rosa para os outros. João Rouco, João de Joana, Manoel Severino, todos ficavam para o eito da usina. A esteira da usina, os trens, os arados, as fornalhas precisavam de gente. Gente que não dormisse, que não fizesse roçado, que não plantasse algodão. (p. 211)

                Daí, a antítese maior entre engenho x usina: a liberdade que os seus moradores tinham, sem que isso representasse uma escravidão. Tudo era livre no engenho, os bichos, as pessoas:

Passaria primeiro pelos casebres dos meus moradores. Mulheres, àquela hora pegadas na enxada, limpando mato. As várzeas desocupadas. O grande engenho entregue aos foreiros. Em cada casa um cercado, porcos, gente vivendo do que era seu. (p. 184)

    Com a chegada da usina, a plantação seria diversificada com a troca do plantio da cana-de-açúcar pela do algodão; enfim, tudo mudaria:

Um administrador qualquer encheria de camumbembagem as salas do Santa Rosa. Era um fim como o de seu Lula. Ao menos, o velho do Santa Fé fora até o fim. Só lhe arrancaram do seu engenho no seu caixão de defunto. E, no entanto, um moço de vinte e poucos anos desertava, seria enxotado dos seus domínios herdados, por imperícia, falta de coragem, medo dos outros, de Marreira, da usina. (p. 184-5)

                A usina com a sua presença e seus mecanismos mostrava como o seu egoísmo tolhia todos os direitos das pessoas e lançava sobre eles somente os deveres:

Os canaviais subiam e desciam pelas encostas, sumiam-se várzea afora. Não se via um roçado de morador, uma vaca amarrada de corda, pastando. Era cana e só cana. A usina só precisava daquilo. Para que moradores com roçado, crianças do gado? Queria gente para o campo e a terra toda só prestava para plantar cana. Acabara com os senhores de engenho, mas destruía também os pequenos que se defendiam no algodão.  (p. 184)

                Ao retornar ao engenho Santa Rosa, Carlos de Melo apresentava-se formado em Direito, porém, sem nenhuma perspectiva de vida e não pretendendo resolver o problema de sua débil ociosidade. Segundo GOMES (1991, p. 264):

O plano mais culminante de interesse humano, em Bangüê, assenta, com efeito, na diversidade desses caracteres; o avô, um antigo senhor de engenho que, embora trôpego de ancianidade e quase cego, ainda mantém o domínio absoluto do seu feudo, e o neto, em que chegando a vez de o substituir rola, de fracasso em fracasso, com a sua bagagem de conhecimentos frívolos, por lhe minguarem as virtudes essenciais de seus antepassados e, principalmente, aquele instinto tenaz de propriedade em que se estribavam senhores de engenho.

                Da mesma forma SOBREIRA (1971, p. 42) reafirma o estilo de apresentação definindo:

O retrato de Carlos de Melo, o homem fraco, sem vontade de querer, é o teste definitivo do romancista, do criador de almas. [...] Mesmo os impulsos sexuais, violentos e dominadores, só servem para ressaltar a pobreza dos gestos ou altos decisivos: falta-lhe até o requisito da animalidade. Sua ausência de vontade é maior do que o sentimento ou o instinto. Revolta-nos sua conduta, sua covardia, sua inexpressividade.

       Acima de tanta negatividade no seu caráter, Carlos de Melo retorna à vida e à realidade por causa da energia positiva que o amor lhe envolve. É este sentimento que lhe dá um inusitado desprendimento que culmina com o êxtase da animalidade e que o faz reagir, pelo menos, temporariamente. É por isso, que GOMES (ibidem, p. 264) afirma que:

Essa influência negativa, desenvolvida pela ociosidade, ascendeu-lhe, furiosamente, o ancestralismo sexual. A sua infirmeza moral encontrou, a princípio, uma compensação se lhe transforma em angústia, a angústia inenarrável de desintegração da personalidade vital, para a qual não encontrará solução definitiva. A única mulher que lhe restabelece a unidade pertence a outro.

                LAWRENCE no seu romance Lady Chatterley’s Lover (1928) também restaura a paz interior e a serenidade a um homem solitário, Mellors:

Ele recuou enquanto ela penetrava na noite, silhueta contra o palor do céu. Quase com amargura ele a viu sumir. Ela o religava à vida, quando ele queria ficar só. Ela lhe custara a privacidade dolorosa de um homem que, afinal, queria apenas ficar só. Ele se voltou para a floresta escura. Tudo estava calmo; a lua se pusera. [...] Luzes elétricas ofuscantes e perversas de Stacks Gate! Havia uma aura indefinível de maldade nelas! E todo o horror instável da noite industrial de Midlands. Ele chegava a ouvir os motores dos guindastes de Stacks Gate qua abaixavam ao fundo do poço os mineiros das sete horas. A mina trabalhava em três turnos. (p. 132)

      A apreensão de Mellors era bastante natural. A presença de Connie em sua vida significava a sua abertura para o mundo exterior, seria o fim de sua reclusão voluntária:

Ele desceu outra vez para a treva e a reclusão do bosque. Porém ele sabia que a reclusão do bosque era ilusória. Os ruídos industriais rompiam a solidão; as luzes resplandecentes, embora invisíveis, zombavam dela. O homem não podia ser um indivíduo privado e só. O mundo não permitia mais a existência de ermitãs. E agora ele assumira a mulher, e impusera a si um novo ciclo de dor e ruína. Ele sabia por experiência própria o que isso significava. (p. 132)

                O industrialismo avançava de forma avassaladora causando certa melancolia em Mellors, que se sentia impotente para enfrentar os seus avanços:

Não era culpa da mulher, nem culpa do amor, tampouco do sexo. A culpa estava ali, por toda parte, nas luzes elétricas malignas e no chocalhar diabólico dos motores. Ali, no mundo da cobiça mecânica, com seus mecanismos de cobiça mecanizada, faiscando no calor das luzes e metais, rosnando no tráfego, ali habitava o imenso mal, pronto para destruir tudo o que não se harmonizasse. Logo ele destruiria o bosque, e as campainhas não brotariam mais. Todas as coisas vulneráveis estavam condenadas a perecer sob o corrimento e a laminação do aço. (p. 132)

   
                O pior era sentir que as mudanças não se verificariam apenas na destruição da natureza, mas também e, principalmente, as pessoas que se tornam frias, nervosas e incapazes de se relacionarem de maneira afetiva coerentemente. Mellors teme por Connie, já que ela pertence a este mundo desvairado pelo alvorecer da modernidade:


Ele pensou em Connie com uma ternura infinita. Pobre menina abandonada, ela era melhor do que imaginava. Ah, tão melhor, pela sociedade impiedosa onde vivia. Pobre menina, que tinha também um pouco da vulnerabilidade dos jacintos silvestres; ela não era toda emborrachada e platinada feito as moças modernas. Eles a liquidariam! Era certo como a vida: eles a liquidariam como liquidavam todas as formas ternas de vida. Ternas! De algum modo ela era terna, terna com a ternura dos jacintos em crescimento, algo que desaparecera das mulheres de celuloide de hoje. Mas ele a protegeria com o seu coração enquanto pudesse. Enquanto pudesse, antes que o insensível mundo de ferro e o Mamona da cobiça não os liquidasse a ambos, tanto a ela quanto a ele. (p. 132)


Referências Bibliográficas:

GOMES, Eugênio. Banguê. In: COUTINHO, Eduardo et alii. José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.  474p.
LAWRENCE, David Herbert. O Amante de Lady Chatterley. Tradução de Fernando B. Ximenes. Rio de Janeiro: Editora Technoprint, 1985.   349p.
REGO, José Lins do. Banguê. 8ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.  338p.
SOBREIRA, Ivan Bechara. O romance de José Lins do Rego. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1971.  182p.

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