Profª. Drª. Bárbara de Fátima.
RESUMO
Este trabalho é uma tentativa de Edição Crítica do soneto Manhã no Mar, de Arthur de Salles, poeta baiano pertencente à fase pré-modernista, cujo período de intensa produção literária está compreendido entre 1901 e 1948. O soneto editado apresenta-se em quatro testemunhos todos impressos. Para o estabelecimento crítico do texto, obedeceu-se, naturalmente, às etapas primordiais da Crítica Textual: recensio; collatio; eliminatio; stemma codicum; emendatio.Tendo em vista a utilização, por parte do poeta, de um vocabulário rico, esmerado e, sobretudo, erudito, fez-se mister a elaboração de um pequeno glossário, que visa esclarecer o conceito de algumas lexias de maior dificuldade para a leitura do soneto.
I- INTRODUÇÃO.
O poeta Arthur de Salles foi um ourives, um escultor, um carpinteiro, e a sua obra, o seu poema é também um produto material, como qualquer outro, onde o que importa não é o sentimento, mas sim a técnica, a capacidade artesanal do escritor devidamente associada a seu esforço. A preocupação exagerada com o poema, tratando-o como produto concreto, final, acabado em que se deposita toda a importância; o afã na construção do objeto, deixando de lado o conteúdo, o sentimento poético, tudo isso parece um reflexo do processo de produção mecânica acelerada em que a época vivia, transformando até o próprio homem em mais um objeto de consumo. Como autor antimaterialista e anti-racionalista, o poeta Arthur de Salles buscou uma linguagem que fosse capaz de sugerir a realidade, e não retratá-la objetivamente. Para isso, o poema Manhã no mar fez uso de símbolos, imagens, metáforas, sinestesias, além de recursos sonoros e cromáticos, tudo com a finalidade de exprimir o mundo interior, intuitivo, antilógico e anti-racional que caracterizou sua posição de escritor parnasiano-simbolista. A paixão de Arthur de Salles pelo mar o inspirou a escrever alguns dos mais belos poemas marítimos da literatura brasileira. O mar, que batia na soleira da sua casa de infância, está presente em muitos dos seus poemas, seja como cenário de morte, seja como cenário de uma radiosa visão. Não só o mar, puro e simples, figura em seus versos, como os elementos que fazem parte dele ou que desfilam por ele: peixes, moluscos, conchas e embarcações. É inegável o valor da obra de Arthur de Salles. Sua poesia é um dos acontecimentos da literatura brasileira. Arthur de Salles, nome marcante da literatura baiana da fase parnasiano-simbolista, citado em algumas antologias da literatura brasileira, ainda permanece como um autor desconhecido dos leitores. Todavia, sua produção literária é vastíssima e riquíssima: contos, crônicas, discursos, cartas, poemas regionais, poemas dramáticos, sonetos, poemas diversos e traduções integram o seu acervo, que vem sendo editado criticamente, sob a responsabilidade do Grupo de Edição Crítica de Textos do IL/UFBA desde o final da década de 70.
II- O SONETO MANHÃ NO MAR.
O soneto Manhã no Mar é um soneto disperso, ou seja, não foi publicado em livro, apenas em jornais e em uma revista literária. O soneto apresenta-se em quatro testemunhos: dois publicados nos jornais: Jornal O Estado da Bahia e no Jornal O Imparcial, cuja cópia que se tem até ao presente momento traz indicação de data de 1935 e 1940, respectivamente, dos jornais que o publicou, o terceiro testemunho que está publicado na Revista Renascença de 1925, e por fim, o quarto testemunho que é a obra póstuma datada de 1973 que foi publicada na Obra poética de Artur de Sales e considerada a vulgata pelos editores. Em relação à estrutura formal, o soneto Manhã no Mar apresenta-se da seguinte forma: versos dodecassílabos, com o esquema de rima ABBA/ABBA/CCD/EED.
III- CRITÉRIOS GERAIS PARA A EDIÇÃO DO SONETO MANHÃ NO MAR.
Para o estabelecimento crítico do soneto Manhã no Mar foram seguidas as etapas preliminares de uma edição crítica: recensio, levantamento do número de testemunhos; collatio, análise comparativa de todos os testemunhos; eliminatio, eliminação dos tetemunhos não autorizados à reconstituição do texto crítico; stemma codicum, classificação em diagrama da relação e filiação existentes entreos testemunhos e emendatio, interferência do editor quanto aos prováveis erros. Durante a realização dessas etapas, foram estabelecidos alguns critérios que permearam a edição do soneto Manhã no mar, a saber:
a) Identificação dos testemunhos: os impressos, quando apresentam, foram identificados através da abreviatura da revista, do jornal ou do livro que as publica; os testemunhos utilizados para esta edição foram identificados pelas datas e locais de publicação fornecidos pela Profª. Drª. Rosa Borges. Essa identificação consta na descrição dos testemunhos; da classificação estemática, ou seja, do estema; e do aparato crítico;
b) Eliminação do testemunho não autorizado: foi expurgado o testemunho post-mortem, i.e., a póstuma, publicado na Obra Poética de Artur de Sales (OP 1973), considerada a vulgata. Mas, ainda assim aparece citada no aparato das variantes da tradição impressa do texto crítico. Contudo, as versões identificadas foram consideradas, pois possuem caracteres ortográficos utilizados até 1943;
c) Escolha do texto de base: para os textos com mais de uma versão, o critério inconteste para a determinação do texto de base é a versão mais recente saída das mãos do autor ou por ele autorizada;
d) Apresentação das variantes: as variantes foram dispostas no aparato crítico em itálico e em negrito, em tipo menor em relação ao texto. Elas, em alguns casos, são seguidas ou precedidas pela invariante, sendo que essa vem em estilo normal, sem itálico e sem negrito;
f) Grafia do nome do poeta: foi mantida a grafia da época do autor: Arthur de Salles.
IV- CRITÉRIOS PARA A EDIÇÃO CRÍTICA DO SONETO DE ARTHUR DE SALLES.
Foram estabelecidas normas que regulamentam a edição crítica de todos os textos literários, éditos e inéditos. Entretanto, para o uso dessas normas deve-se considerar as particularidades de cada texto. Adotamos as seguintes normas para a edição crítica do soneto Manhã no Mar de Arthur de Salles:
1- Ser fiel ao texto de base.
2- Proceder à atualização ortográfica:
conservando a grafia do ditongo ou, exceto nos casos de rima;
mantendo a grafia de Arthur de Salles nas lexias não dicionarizadas;
conservando os estrangeirismos, ou seja, palavras provenientes do latim como aparecem em Arthur de Salles;
3- Proceder ao desdobramento das abreviaturas, assinalando-as no texto com letras em itálico.
4- Indicar as interferências no texto com o auxílio de colchetes [ ].
5- Reconstituir a pontuação, conservando, de acordo com o texto de base, as linhas de pontos.
6- Restaurar as passagens onde se registram erros óbvios.
7- Respeitar o seccionamento do texto de base, numerando os parágrafos, as estrofes, os grupos de versos.
V- EDIÇÃO CRÍTICA DO SONETO MANHÃ NO MAR.
Dispõe-se de quatro testemunhos: I (1940), publicado no Jornal O Imparcial datado de 8 de Fevereiro de 1940; EB (1935), publicado no Jornal O Estado da Bahia, datado de 11 de Maio de 1935; R (1925), publicado na Revista Renascença, datado de Julho de 1925; e OP (1973), publicado na Obra poética de Artur de Sales.
5.1 DESCRIÇÃO DOS TESTEMUNHOS.
5.1.1 Testemunho I (1940).
SALLES, Arthur de. Manhã no Mar. O Imparcial, p.5, 8 fev. 1940. Primeira Página.
O texto apresenta-se com dezesseis linhas: L.1 título, MANHÃ NO MAR; L.2-16, Arthur de Salles.
5.1.2 Testemunho EB (1935).
SALLES, Arthur de. Manhã no Mar. O Estado da Bahia, p.5, 11 maio 1935.
O texto apresenta-se como Manhã no Mar, de Arthur de Salles. Dezesseis linhas: L.1, título, Manhã no Mar; L.2-15, versos; L.16, Arthur de Salles. Encontra-se no texto algumas gralhas tipográficas, ou seja, um espaçamento entre as letras de algumas palavras, ao centro: V. 1, 2, 4, 5, 8, 10, 12, 14, ou seja, en volve, e ntocado, ven to, apon ta, im menso, e spumas, multicô r.
5.1.3 Testemunho R (1925).
SALLES, Arthur de. Manhã no Mar. Renascença, Salvador, ano 10, n. 129, jul. 1925.
O texto consta de quinze linhas: L.1, Manhã no Mar; L. 2-15, versos.
5.1.4 Testemunho OP (1973).
SALLES, Arthur de. Manhã no Mar. In: Secretaria de Educação e Cultura. Obra poética de Artur de Sales. Salvador: Mensageiro da Fé, 1973. p. 271.
O texto consta de quinze linhas: L.1, título, MANHÃ NO MAR, alinhado à esquerda; L. 2-15, versos.
5.2 CLASSIFICAÇÃO ESTEMÁTICA
De acordo com a comparação realizada entre os testemunhos, e observando-se a identificação das variantes temos que os testemunhos R (1925) e EB (1935) apresentam o mesmo texto, a única divergência entre ambos está no tocante à pontuação (V. 1, 2, 6, 8, 10, 12, 14). O testemunho OP (1973), está com a grafia mais atualizada, e, portanto, igual ao testemunho I (1940), que por várias razões, é colocado de forma separada dos demais testemunhos, entre elas por apresentar nuances modificadoras ao texto do poema. São elas: na estrutura sintática (modificações textuais – V. 4, 9, 10, 11), nas classes gramaticais (V. 1, 2, 3, 4, 6, 7, 8, 10, 11).
O estema que representa a relação entre os testemunhos:
O
Ms. A Ms. B
R EB I
(1925) (1935) (1940)
OP
(1973)
5.3 ESCOLHA DO TEXTO DE BASE
É provável que o poeta tenha feito modificações em texto durante o período que se estende entre o envio do manuscrito e a sua publicação em 1940. Sendo assim, propõe-se que o texto de base seja o testemunho mais recente publicado em vida do autor: I (1940).
Apresentaremos as modificações textuais sofridas pelos testemunhos deste poema que foi publicado em vida do autor: R (1925), EB (1935) e I (1940). Após um estudo comparativo, observamos que R e EB apresentam divergências apenas no tocante à pontuação:
TESTEMUNHOS R EB
VERSOS V.1 Alto e denso, o nevoeiro, envolve todo o espaço... Alto e denso, o nevoeiro, envolve todo o espaço.
V.2 E o mar, como num fojo, entocado e medroso E o mar, como num fojo (s. v.) entocado e medroso
V.6 Cresce e se alarga, e cresce. E esquivo e sussurroso. Cresce e se alarga (s. v.) e cresce. E esquivo e sussurroso.
V. 8 De antemanhã, seu corpo immenso, plúmbeo e lasso. De antemanhã (s.v.) seu corpo immenso, plúmbeo e lasso.
V.10 Que ondula na fluidez das espumas de argento, Que ondula na fluidez das espumas de argento.
V.12 E o mar, peixe a fugir, entre as malhas se perde, E o mar, peixe a fugir e entre as malhas se perde.
V.14 Acceso na explosão multicor das escamas. Acceso na explosão multicor das escamas (s.p.)
Observa-se uma mudança lexical no V. 9 (banca – barca), e, ainda, uma supressão do conectivo e no V. 12 (EB)
Na análise do testemunho I (1940), observa-se que há várias mudanças em relação a R (1925): na estrutura sintática, quando o autor modificou alguns dos versos (V. 4, 9, 10, 11), ao substituir um sintagma preposicional (SP) por um sintagma verbal (SV), por exemplo, temos: Num sibillo cortante por Desmaia a estrela dalva (V.4) e alguns fragmentos frasais como: E, pescador, da barca azul do firmamento por Mas eis que da canôa azul do firmamento (V.9); Que ondula na fluidez das espumas de argento, por O sol vae atirando entre espumas de argento (V. 10); O dia estende o sol – a rede de ouro e chammas... por Sua rêde tecida a fios de ouro e chamas (V.11). Também foram encontradas várias mudanças nos sinais gráficos de pontuação como: vírgulas, reticências e o ponto final.
5.4 TEXTO CRÍTICO COM APARATO DAS VARIANTES DA TRADIÇÃO IMPRESSA.
[I (1940)]
MANHÃ NO MAR
R Manhã no mar EB Manhã no mar
Alto e denso o nevoeiro envolve todo o espaço.
R, EB denso, EB nevoeiro, R espaço...
R, EB denso, EB nevoeiro, R espaço...
O mar como num fojo, entocado e medroso,
R, EB E o mar, EB fojo (s. v.) I fôjo
R, EB medroso (s. v.)
Dentro dele, soturno, ulula misterioso.
R, EB delle R, EB mysterioso...
R, EB delle R, EB mysterioso...
Desmaia a estrela-d’alva. O vento sopra escasso.
R Num sibillo cortante o vento sopra escasso...
EB Num sybillo cortante o ven to (falha na impressão) sopra escasso... I, OP estrela dalva
Longe agora, no céu, aponta um róseo traço.
R céo I ceu R, EB, I roseo
R céo I ceu R, EB, I roseo
Cresce e se alarga e cresce. Esquivo e sussuroso.
R alarga, R, EB E esquivo R, EB sussurroso (s.p.)
R alarga, R, EB E esquivo R, EB sussurroso (s.p.)
O mar deixa entrever no clarão duvidoso
R, EB entrever,
R, EB entrever,
Da antemanhã seu corpo imenso, plúmbeo e lasso.
R antemanhã, I ante-manhã OP ante manhã R immenso R pumbleo (erro tipográfico) EB, I plumbeo
R antemanhã, I ante-manhã OP ante manhã R immenso R pumbleo (erro tipográfico) EB, I plumbeo
Mas eis que da canoa azul do firmamento
R, EB E, pescador, da barca azul do firmamento,
(EB traz banca por barca: gralha tipográfica)
OP que na canoa I canoa
O sol vai atirando entre espumas de argento
R, EB Que ondula na fluidez das espumas de argento, (EB de argento.) I vae
Sua rede tecida a fios de ouro e chamas.
R, EB O dia estende o sol – a rede de ouro e chammas... (EB rêde) I rêde
E o mar, peixe a fugir, entre as malhas se perde.
EB fugir (s. v.) e entre R perde, EB perde (s. p.)
Debate-se, palpita, anseia inquieto e verde
EB pslpita (gralha tipográfica)
R estua, inquieto EB estu’a in quieto (falha na impressão) R, EB verde,
Aceso na explosão multicor das escamas. R, EB Acceso I multicôr EB escamas (s. p.)
5.5 GLOSSÁRIO.
Este pequeno glossário não tem como pretensão ser um guia semântico rigoroso e completo. Objetiva-se, com ele, esclarecer o sentido das lexias elencadas que apresentaram maior dificuldade, facilitando, dessa forma, a compreensão do soneto. As lexias levantadas estão dispostas em ordem alfabética, em estado primitivo, ou seja, não flexionadas. Nesses casos, a sua apresentação se dá em colchetes. Quando a forma primitiva consta do texto de base utilizado para a fixação do texto crítico, o uso dos colchetes foi dispensado. Seguem-se às lexias:
1) a classificação gramatical correspondente, em sua forma abreviada usual: adjetivo=adj.; locução=loc.; substantivo feminino=s. f.; substantivo masculino=s.m.; verbo=v., seguido de sua regência, t.=transitivo, d=direto, i.=indireto, int.=intransitivo, p=pronominal;
2) a acepção;
3) o verso ou versos em que se encontra a lexia em tela, acompanhada da indicação, entre parênteses, do verso em que se acha;
4) as lexias aprecem neste Glossário na ordem na qual elas aparecem no texto, sem observação da ordem alfabética.
FOJO (s.m.) – Cova funda, cuja abertura se tapa ou se disfarça com ramos, para nela se apanharem vivos, animais ferozes. Cova semelhante que se faz durante a guerra, para colher inimigos. Sorvedoiro para águas. Caverna. (Lat. fogium). (V.2)
ULULA (s.f.) – do verbo ulular (v. i.) soltar a voz triste e lamentosa. Uivar; ganir. (V.4)
PLÚMBEO (adj.) – Relativo a chumbo; que tem a cor do chumbo; feito de chumbo. (Lat. plumbeus). (V.8)
LASSO (adj.) – Fatigado, cansado. Dissoluto. Enervado. Gasto. Bambo. Froixo, relaxado; laxo. (Lat. lassus). (V.8)
ARGENTO (s.m.) – Designação alatinada da prata. Poét. do mar. O mesmo que argênteo. (Lat. argentum). (V.10)
VI- CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A edição crítica apresentada neste trabalho não é definitiva, trata-se apenas de uma tentativa de edição crítica do soneto Manhã no Mar de Arthur de Salles. Por que uma tentativa? Porque não há edições críticas definitivas, pois toda edição crítica é uma obra aberta, sujeita a alterações. Segundo Spina, “qualquer edição crítica representa, sempre, uma tentativa de restauração de um texto, provisoriamente definitiva enquanto não surjam outras, naturalmente baseadas em novos achados ou em diferentes perspectivas metodológicas,que possam lançar novas luzes sobre o original.”
Sendo assim, esta edição poderá sofrer alterações caso sejam encontradas novas versões, principalmente se essas contiverem interferências do autor e, sobretudo, se essas alterações estiverem compreendidas no período entre a escritura da primeira versão, ou seja, a manuscrita, e a que foi publicada em 1940.
VII- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FIGUEIREDO, Cândido. Dicionário da Língua Portuguesa. 14ed. Portugal: Livraria Bertrand (Apartado 37 – Amadora), 1973. Vol. I e II.
SALLES, Arthur de. Manhã no mar. In: Jornal O Imperial, p.5, 8 fev. 1940.
________________. Manhã no mar. In: Jornal O Estado da Bahia, p. 5, 11 maio 1935.
________________. Manhã no mar. In: Revista Renascença, Salvador, ano 10, n. 129, jul. 1925.
________________. Manhã no mar. In: Secretaria de Educação e Cultura. Obra poética de Artur de Sales. Salvador: Mensageiro da Fé, 1973. p. 271.
SPINA, Segismundo. Introdução a Ecdótica. São Paulo: Ars Poética/EDUSP, 1994. p. 6-68.
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