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SANTIAGO, Silviano. Outubro Retalhado. In: O Cosmopolitismo do Pobre. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 252p.
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Ao se propor a escrever e lutar através de seu idealismo e linguagem franca e objetiva o que os intelectuais devem fazer, Silviano Santiago instaura algo realmente novo. Em primeiro lugar se coloca na vanguarda das tradições críticas da modernidade, depois assume as dificuldades do século atual sem forçar o entendimento sobre a complexidade da política pós-moderna, e por fim apresenta uma obra extensa sobre a qual o interesse multidisciplinar somente cresce.
Profª. Drª. Bárbara de Fátima.
Ao se propor a escrever e lutar através de seu idealismo e linguagem franca e objetiva o que os intelectuais devem fazer, Silviano Santiago instaura algo realmente novo. Em primeiro lugar se coloca na vanguarda das tradições críticas da modernidade, depois assume as dificuldades do século atual sem forçar o entendimento sobre a complexidade da política pós-moderna, e por fim apresenta uma obra extensa sobre a qual o interesse multidisciplinar somente cresce.
Em Cosmpolitismo do Pobre, o autor reafirma o movimento iniciado em seu clássico O Entre-Lugar do Discurso Latino-Americano, ao pensar alternativas aos grandes sistemas totalizantes, homogeneizados e excludentes, tenham estes os nomes de capitalismo ou nação, mas sem perder um posicionamento e engajamento em um mundo já então pós-utópico, nem cair no desespero da dualidade revolução ou barbárie. Em tempos difíceis, como o nosso, sem revolução, mas não sem esperanças, a obra de Silviano Santiago continua sendo uma referência, um farol para se compreender o Brasil após a ditadura, crítico do imobilismo consumista, realizando uma política do fragmento e da diversidade, mas sem cair em guetização particularista. O entre-lugar, longe de uma abstração, é um espaço central para compreender não só o posicionamento dos intelectuais em viagens geográficas, intelectuais e de formação, mas para lidar com o deslocamento de grandes contingentes da população mundial. É desse povo que Santiago trata. A esta velha prática multiculturalista que pretende fundir todas as diferenças no caldeirão da identidade única Silviano Santiago opõe aquilo que ele chama de novo multiculturalismo, "que passaria a se fundamentar na compreensão dum duplo processo em marcha avassaladora pela economia globalizada." Significa trocar a condição utópica de nação – que o autor lembra só interessar a sua elite – por uma reconfiguração cosmopolita "que contemple tanto os seus novos moradores quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico."
Em Outubro Retalhado, Silviano Santiago apresenta que se uma história está mal contada quando algo dela é subtraído ao ouvinte ou interlocutor, quando a narrativa permanece em suspenso, entrecortada por silêncios e pontos obscuros, intencionais ou não, que atiçam nosso desejo de ir além das palavras. O bom texto literário é, nesse sentido, uma história mal contada. Nele tudo deriva dessa perspectiva de enunciação que faz da linguagem um jogo de meias verdades, no qual realidade e ficção, autor e personagem, autobiografia e fingimento levam ao extremo o limite tênue que os distancia e aproxima. Por isso, também, a auto-reflexão é nele parte indissociável do enredo a que dá forma e sentido. O resultado é um texto híbrido, cuja dicção ao mesmo tempo ficcional e ensaísta ampliou e continua a ampliar o horizonte de expectativa do leitor contemporâneo. Silviano Santiago tematiza em Outubro Retalhado as reflexões sobre a literatura nacional como forma de cultura brasileira, e denuncia criticamente as produções de arte em face da indústria cultural e política estão dissociadas atualmente do “reconhecimento universal” (Santiago, p. 77)
O texto se apresenta como uma ruptura ou uma oposição entre as várias facetas de se pensar a literatura em termos de premiação. Temos a literatura como o estudo de quatro autores de diferentes continentes: J. M Coetzee (Sul-Africano), Susan Sontag (Americana), Christa Wolf (Alemã) e Paulo Coelho (Brasileiro), preocupados em buscar uma metodologia própria e um objeto e legítimo. Os quatro autores apresentam as relações entre a literatura, a cultura e outras áreas de conhecimento, tais como sociologia, psicanálise, filosofia e antropologia, que se ocupa de questões como significação, autoria, subjetividade, ideologia, gênero, identidade cultural e diferença.
Silviano Santiago apresenta uma série de críticas ao processo de premiação que não leva em conta as “três entidades do tabuleiro literário do novo milênio: o romancista de qualidade, o autor recordista e o intelectual participante” (Santiago, p. 77). Ampliando ou buscando inserir a literatura no campo da cultura, o estudioso da literatura precisa enfrentar a questão de que a literatura é uma prática cultural entre outras e, talvez, nem mesmo a mais significativa em um mundo fascinado por imagens e movimento. Nesse sentido, a aura que a literatura recebeu a partir dos românticos como um discurso separado e específico, parece agora se encerrar. É a questão do cânone levada ao extremo que faz da literatura uma prática a ser desconstruída culturalmente, à medida que funciona como outro discurso qualquer e no seu limite nem sequer deve ser tomada como um discurso em separado. Afinal, o ficcional e o poético são facilmente identificados como parte constitutiva de vários discursos. Além disso, há de se considerar também que as novas manifestações culturais funcionam por inclusão: são filmes baseados em livros, livros baseados em acontecimentos, vidas que buscam inspiração no cinema, tudo tecido em redes que prendem, apagam e perdem os limites entre o que é próprio de uma ou outra área. Da relação entre literatura e cultura resta uma pergunta inquietante: o literário, seria mesmo, como querem alguns analistas do discurso, apenas um julgamento social em relação a alguns textos? E a coloração do “engajamento político do intelectual” (Santiago, p. 76) que traz à tona uma voz aguda e persistente no meio social?
O resultado desse cenário é a percepção de que vivemos, hoje, na literatura e nos estudos literários em geral, situações paradoxais. É justamente quando a quantidade de livros publicados é tão grande, a ponto de já não sabermos o que ler, que o texto deixou de ser algo concreto para se tornar uma metáfora, uma alegoria. O descentramento da literatura em favor de todos os tipos de questões sobre a cultura e os problemas sociais conduzem a uma amplitude fértil e renovadora da área, mas ameaça a visualização do “umbigo e do talão de cheques” (Santiago, p. 77). Se tudo pode ser estudado, então nada é propriamente literário. Sem limites, nem mesmo um campo pode ser visualizado. É a angústia da identidade de uma disciplina que sempre se apropriou em métodos desenvolvidos nas áreas da literatura, seja a história, seja a teoria da literatura, mas que agora parece ter perdido o seu próprio centro, apresentando-se fragmentada e pluralística e extensivamente inclusiva.
Paralelo a isso, experienciamos também uma espécie de guetização: o conhecimento literário exige uma tal sofisticação e distanciamento que deixa de ser de interesse geral e passa a ser de interesse específico. Perde-se, dessa maneira, o espaço social que para alguns se confunde mesmo com o próprio lugar da literatura em nossa sociedade.
Não é sem razão, portanto, que privilegiamos em nossos textos as metáforas espaciais. Todo um léxico constituído de fronteiras, territórios, configurações, reterritorializações, lugares, acervos, centros, trânsito, periferias e redes buscam traduzir os recortes e as tentativas de mapear no estudo da cultura o lugar da literatura de massa.
Todavia, mesmo verdadeira enquanto leitura da atual configuração do campo comparatista, essa percepção das suas metamorfoses em termos de oposição entre paradigmas talvez seja mais efeito de um determinado modo de historicizar o fenômeno do que a crise em si mesma. Sem desconsiderar a pertinência do questionamento sobre o lugar institucional da literatura, a posição da literatura como uma prática cultural entre outras e as questões interdisciplinares que o comparatismo enseja, propomo-nos mudar um pouco de perspectiva.
Não é difícil perceber que, em lugar da oposição e do confronto, a definição e a trajetória busca estabelecer uma linha de continuidade entre o passado e o presente. A costura é feita pelo lado de dentro do comparatismo, ressaltando o seu traço metodológico mais forte – o colocar em relação – e o compromisso com o literário, definido como objeto central e do qual se parte. É com base nessa delimitação primeira que estamos propondo operacionalizar a estratégia interdisciplinar traduzindo-a como o estudo da literatura em suas contaminações.
Em um primeiro momento, a noção de contaminação parece sintonizada com um tempo onde a ameaça letal dos vírus, seja nas máquinas, seja nos homens, desenvolve o medo do contágio e coloca todos os contatos sob suspeita. Trata-se, assim, de um contágio perigoso, uma transmissão indevida, uma corrupção da verdade, um vício documental, um atentado à pureza. Mas a contaminação que se busca promover entre disciplinas, discursos e culturas pode ter um sentido diferente daquele ligado ao horizonte das doenças transmissíveis. Esse outro sentido deve ser delineado a partir da contaminação como uma das estratégias de leitura da literatura comparada. Entre dívidas, empréstimos, débitos, importações, exportações, contatos e cruzamentos, a contaminação faz parte do repertório de metáforas usado pela literatura de massa para explicar as relações culturais que constituem o seu universo de investigação.
A noção de contaminação pode ser associada ao conceito de influência, do tipo que contamina sem se deixar contaminar, no sentido da união do conhecido para gerar o novo. Mas também poderá esta tal contaminação conduzir os autores a “becos sem saída circunstanciais e individualizados” (Santiago, p. 77) e que será também uma forma de assegurar uma nova existência, uma estratégia empregada para construir um novo texto. É com esse sentido último que devemos tomar a contaminação como estratégia de atividade intelectual. Através dela poderemos tomar como objeto de estudo as contaminações que a partir da literatura renovam a cultura, entrelaçando em um movimento vivo o próprio e o alheio, o conhecido e o ignorado, o centro e a margem. E “descobrir o que existe de misterioso nessas contaminações”[1] (Carvalhal, p.15)
O primeiro autor a ser apresentado por Silviano Santiago é o escritor Sul-Africano J. M. Coetzee – Prêmio Nobel de Literatura com a obra As Vidas dos Animais.[2] O que é um autor e qual sua real relação com sua obra fazem parte de um amplo questionamento pessoal, traduzido agora para Elizabeth Costello - Oito Palestras. Nas palavras do autor, o livro não é um romance, mas sim "oito mais ou menos didáticas e mais ou menos autônomas peças de ficção".
Nele, somos introduzidos a Elizabeth Costello, uma renomada escritora de 66 anos que viaja pelo mundo recebendo prêmios, dando palestras e se metendo em polêmicas acadêmicas. Seu livro mais conhecido já é antigo, dos anos 60, mas ela segue sendo cercada de atenções, de jornalistas deslumbrados e de seguidores interesseiros. Por meio da escritora e dos debates em que se envolve, Coetzee monta um intrincado jogo de espelhos. Ora são suas preocupações que aparecem na voz da protagonista, ora é o oposto delas, sem nunca sabermos ao certo onde está o autor e onde está a personagem. Os temas são variados, das origens do mal ao humanismo, dos direitos dos animais à função da universidade na sociedade contemporânea.
Coetzee faz uma crítica feroz ao showbusiness literário, à indústria de autopromoção dos autores, ao lucrativo circuito internacional de palestras e prêmios, ao assédio da imprensa e à transformação de escritores em celebridades. Numa das peças, Costello viaja num navio em que se realizam palestras literárias para divertir os passageiros e apresenta uma versão resumida do mesmo discurso que já deu centenas de vezes.
Coetzee celebrizou-se por retratar, em seus romances, uma África do Sul fora do lugar-comum da luta racial e do conflito político.
Nele, somos introduzidos a Elizabeth Costello, uma renomada escritora de 66 anos que viaja pelo mundo recebendo prêmios, dando palestras e se metendo em polêmicas acadêmicas. Seu livro mais conhecido já é antigo, dos anos 60, mas ela segue sendo cercada de atenções, de jornalistas deslumbrados e de seguidores interesseiros. Por meio da escritora e dos debates em que se envolve, Coetzee monta um intrincado jogo de espelhos. Ora são suas preocupações que aparecem na voz da protagonista, ora é o oposto delas, sem nunca sabermos ao certo onde está o autor e onde está a personagem. Os temas são variados, das origens do mal ao humanismo, dos direitos dos animais à função da universidade na sociedade contemporânea.
Coetzee faz uma crítica feroz ao showbusiness literário, à indústria de autopromoção dos autores, ao lucrativo circuito internacional de palestras e prêmios, ao assédio da imprensa e à transformação de escritores em celebridades. Numa das peças, Costello viaja num navio em que se realizam palestras literárias para divertir os passageiros e apresenta uma versão resumida do mesmo discurso que já deu centenas de vezes.
Coetzee celebrizou-se por retratar, em seus romances, uma África do Sul fora do lugar-comum da luta racial e do conflito político.
As Vidas dos Animais é uma obra intrigante que se parece um pouco com uma casa de espelhos. Mas – e é aqui que o jogo de espelhos começa – o conto é sobre uma romancista que é convidada por uma universidade para proferir uma conferência. Mas a conferencista, ao invés de proferir uma conferência sobre literatura, como seria de esperar, escolhe o tema dos direitos dos animais, apresentando duas conferências. Estas duas conferências são-nos apresentadas na íntegra, com interlúdios que relatam a difícil relação que a romancista tem com o seu filho (professor na universidade em questão) e com a nora, que é especialista em filosofia da mente e extremamente crítica em relação às idéias da romancista quanto aos direitos dos animais.
Assim, na sua totalidade, As Vidas dos Animais não é apenas uma narrativa dentro de uma narrativa, é uma narrativa dentro de uma narrativa que inclui críticas diversificadas a ambas.
A romancista Costello apresentada por Coetzee é uma mulher idosa que exibe uma amargura resignada relativamente ao modo como os seres humanos tratam os animais, matando-os e fazendo-os sofrer, como se fossem objetos inanimados que podemos usar para satisfazer os nossos prazeres mais egoístas e irrelevantes — como um bife tenro ou uns sapatos macios de cabedal. Ela tem a sensação de que os argumentos filosóficos são insusceptíveis de fazer as pessoas mudar de hábitos, e de as levar a deixar de fazer sofrer os animais e de os usar como se fossem objetos inanimados.
Por outro lado, a romancista de Coetzee está cada vez mais convencida de que são gritantes as semelhanças entre o que fazemos aos animais e o que os nazis fizeram e teriam continuado a fazer aos judeus caso tivessem ganho a guerra. Muitas pessoas acham esta idéia insultuosa e um dos personagens do conto de Coetzee recusa-se precisamente a participar no jantar oferecido à romancista pela universidade precisamente por se sentir ofendido com a analogia.
Através da sua personagem, Coetzee discute idéias de filósofos como Descartes, Thomas Nagel, Bernard Williams, Mary Migdley e Aristóteles, entre outros. A literatura faz muitas vezes incursões na filosofia – e ainda bem – mas infelizmente, regra geral, essas incursões são pouco mais do que patéticas. E é o que acontece neste caso. Ler o que Coetzee pensa acerca de Nagel ou Descartes é pouco diferente de ler o que um mau aluno do ensino secundário pensa: muita confusão, pensamentos irrefletidos e a incompreensão básica que as pessoas sem uma formação adequada em filosofia normalmente têm dos problemas, das teorias e dos argumentos da filosofia.
Estamos perante uma obra que transgride as fronteiras entre romance e ensaio, integrando os romancistas no debate internacional de idéias — e retirando-os do solipsismo bacoco em que o romantismo alemão os deixou, preocupados com a sua alma e as suas angústias de trazer por casa.
A segunda autora é Susan Sontag. Observa-se que é um erro, porém, atribuir todos os males a origens psicossomáticas. Essa visão equivocada é fruto de um certo "fundamentalismo psicológico" e foi denunciada pela escritora americana Susan Sontag, que morreu em dezembro de 2004, vítima de câncer. Na década de 70, quando recebeu o diagnóstico de que tinha um tumor maligno no seio, Susan ouviu de muita gente que o câncer era uma doença típica de pessoas com personalidade cinzenta, que reprimiam suas emoções ou não as demonstravam a contento. Os pacientes viam-se obrigados a arcar, assim, com um duplo peso: o do próprio tumor e o da "culpa" por tê-lo criado em virtude de um caráter pouco expansivo – tese sem nenhum respaldo científico. Inconformada, a escritora lançou-se a uma pesquisa histórica e constatou que, antes de ser descoberto o bacilo deflagrador da tuberculose, essa infecção pulmonar, um verdadeiro flagelo até o início do século XX, era também creditada a um dado de personalidade: gente romântica demais estaria mais afeita a contraí-la. Contra esse tipo de tolice, Susan Sontag escreveu um livro belíssimo, A Doença como Metáfora.[3]
Ousada e polêmica, Susan Sontag sempre teve papel ativo na defesa dos direitos humanos, e foi uma das principais líderes do movimento intelectual contrário à Guerra do Vietnã. Em 2001, voltou a fazer barulho ao escrever na revista The New Yorker que, de certa forma, o próprio governo norte-americano poderia ser responsabilizado pelos atentados de 11 de setembro.
Saber é poder. Essa máxima saiu da boca de Michel Foucault, o celebrado filósofo francês dos anos 80. Muita gente acreditou nela. Palpite infeliz. O século XX foi o século de teorias e idéias revolucionárias, mas nenhuma conquistou exatamente o poder. Donde, o saber e o poder andaram sempre por vias diferentes, influenciando-se mutuamente, com pontos de tangência, mas sem estabelecer uma união duradoura. Em última hipótese, os regimes políticos espezinharam o saber e a cultura.
Ao lado de pesos pesados como Noam Chomsky e Norman Mailer, Susan Sontag foi a voz dissidente dos valores americanos estabelecidos no pós-11 de setembro. Foi a primeira intelectual a se rebelar em público contra a cruzada anti-terror de George W. Bush. Mas sua militância não se resume a isso. Da fotografia (Sobre fotografia e Diante da dor dos outros) à Aids (A doença como metáfora), falou em quase todos os assuntos. Repetiu a façanha de alguns intelectuais do século passado, saindo do anonimato para ir direto pro front. Sartre conversava com operários na porta das fábricas, em Paris. Simone Weil levou anos trabalhando nas linhas de montagem da Renault, para mergulhar no universo do operário francês. Susan Sontag, apesar da admiração por pensadores europeus (ajudou a revelar alguns deles nos Estados Unidos, como Walter Benjamin), não chegou a extremos. Mas passou décadas em Sarajevo, onde chegou a montar a peça Esperando Godot, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.
A saraivada de adjetivos a ela atribuídos ao longo da vida, segundo o longo necrológio do New York Times publicado no dia seguinte à sua morte, mostra que Susan Sontag contrariou gregos e troianos, honrando, portanto, o que há de mais caro num intelectual: a capacidade crítica e a coragem de contrariar interesses. Mas numa era dominada pelo pensamento único, pelo politicamente correto, a força dos intelectuais (do saber, como queria Foucault) talvez não passe de uma simples metáfora. Mas talvez possam fazer ainda muito barulho.
A terceira autora descrita por Silviano Santiago é Christa Wolf, uma das mais notáveis escritoras alemãs, cuja obra ultrapassa todo e qualquer limite geográfico e cultural na sua busca pela verdade. A sua produção literária acompanhou, bem de perto, o processo evolutivo da ex-RDA, concedendo ao indivíduo um papel central nas suas construções narrativas. Segundo Christa Wolf, a relação entre o indivíduo e a sociedade é quase sempre conflituosa e geradora de sofrimentos, sacrifícios e inquietações, sobretudo nas mulheres, que se têm submetido, ao longo dos séculos, aos valores masculinos.
Acreditando, pois, numa possível emancipação do gênero humano, a autora colocou as mulheres, devoradas por tormentos interiores, no centro dos seus romances. Assim, inseriu a personagem principal de Medeia - Vozes,[4] caracterizada por uma forte densidade dramática, num período em que se subestimava o poder feminino oprimido pelo masculino e em que os reis escarneciam das rainhas.
Medeia, fala, também, em nome dos Turcos na Alemanha, dos descendentes Africanos na Europa e dos Judeus, ou seja, dá voz a todos os que foram caluniados, rejeitados e desprezados.
A sua mensagem passa através da literatura que associa o mito. Incapaz de resistir ao seu fascínio, caracteriza, ainda, a grande variedade de fontes e tradições históricas como estimulantes, excitantes e instrutivas. No caso de Medeia – Vozes, a autora, após diferentes interpretações do mito em questão (Medeia), rejeita, pura e simplesmente, a efabulação de Eurípides e a imagem de mãe infanticida que foi imposta à consciência ocidental, concedendo a Medeia a possibilidade de se afirmar como mulher e de revelar como foi vítima das necessidades e dos valores dos homens.
Por mais de dois mil anos, Medeia, uma das mais poderosas mulheres da mitologia grega, é acusada de vários crimes, tais como o fratricídio, o infanticídio e o envenenamento de Glauce, mas Christa Wolf vem negar que Medeia tenha cometido algum destes crimes. Apresentando-nos um mito que ficou na memória dos homens e demonstrando-nos a perenidade do mesmo no tempo, Wolf transforma este mito antigo e a sua personagem central na exploração contemporânea do poder.
A abordagem do mito, em Medeia - Vozes, é original e inovadora pelo fato de Medeia não cometer nenhum dos crimes de que Eurípides a acusa. Wolf apresenta Medeia como uma mulher que está na fronteira entre dois sistemas de valor, corporizados respectivamente pela sua terra natal, a Cólquida e pela terra para a qual foge, Corinto. Aqui, Medeia é abandonada pelo marido e as forças que estão no poder manifestam-se contra ela, chegando mesmo à perseguição. A autora, como defensora dos fracos e oprimidos, dá-nos, também, a imagem de Medeia e dos Colcos como emigrantes refugiados junto dos Coríntios de quem divergem física (cor da pele e do cabelo) e culturalmente.
Pode-se, ainda, associar a atmosfera de Medeia - Vozes ao ambiente de desconfiança e traição que caracteriza o colapso de hegemonia da Alemanha de Leste e vê, no desprezo de Medeia pela traição de Jasão, o desprezo dos que, no século XIX, chegaram a Paris e a Londres e se desiludiram com as promessas imperiais de uma vida melhor.
Numa emocionante história de intriga política e de amor, a Medeia de Christa Wolf é decidida, sincera, confiante; é uma mulher de compaixão, coragem e convicção, que luta para preservar a sua independência, mesmo quando o seu conhecimento se torna um risco. Esta Medeia, cujos crimes são apenas o esforço por compreender e descobrir a verdade, ama os seus filhos, possui extraordinários poderes mágicos, tem o dom da cura e é invejada, temida e falsamente acusada de assassinato por aqueles que a rodeiam. É uma Medeia a quem ninguém consegue ficar indiferente.
Além de bela e provocatória, esta Medeia é uma mulher que se evidencia pelas suas fortes convicções e que luta até ao fim pelos seus ideais. É mais humana que a Medeia de Eurípides, não apresentando o seu caráter vingativo, mas é, também, bárbara e feiticeira, tal como se autodenomina. É uma personagem com caráter quase omnisciente, uma vez que conhece os segredos mais bem guardados de Corinto e da Cólquida, que vive determinada
a preservar a sua independência e, acima de tudo, a descobrir a verdade. É, pois, a descoberta dessa verdade, ou antes de um segredo temível, que a levará a sofrer represálias e a ser acusada, injustamente, de vários crimes. Medeia – Vozes é, assim, um estudo de poder, do modo como este opera e do comportamento dos seres humanos sob pressão, quando o poder os oprime.
Em conclusão, Christa Wolf apresenta-nos uma outra Medeia, diferente da euripidiana, que aparece, numa abordagem direta e original, aos olhos da autora, isenta de qualquer crime e integrada numa emocionante história de intriga política, de amor, de poder e de opressão do poder perante os fracos e oprimidos, que tanto defende.
Comprova-se, pois, em Medeia – Vozes, que, embora o mito de Medeia remonte a uma época passada e a tradições literárias bastante antigas, entre elas a versão de Eurípides, que imortalizou Medeia como a infanticida, continua sempre bastante dinâmico e atual.
O quarto autor apresentado por Silviano Santiago, Paulo Coelho é definitivamente um fenômeno: autor de livros modestíssimos, repletos de tramas comuns, transformou-se num fenômeno de vendas mundial por conta de uma poderosa estrutura de marketing e divulgação. Disso ninguém duvida. O mais novo produto dessa indústria chegou ao mercado devidamente balizado por recordes, cifras, desempenho. Mas, curiosamente, ninguém fala da sua literatura. Será que ela existe?
Uma análise semiótica (deixando de lado a evidente pretensão dessa proposta) talvez ajude a elucidar a questão. Quem vai a uma livraria geralmente está em busca de um conjunto de qualidades: um autor de sua preferência, um livro bem feito, um conteúdo instigante, a promessa de uma boa leitura (tecnicamente falando) ou até mesmo o status de adquirir uma determinada obra literária, geralmente clássica.
Nem sempre esses requisitos estão presentes num mesmo livro, é claro, mas no caso de Paulo Coelho há uma assombrosa conjugação de fatores que fazem o público abrir a carteira sem pestanejar. Mágico que é, talvez o próprio autor pudesse ter uma explicação para essa dádiva.
O discurso mitológico que cerca a marca Paulo Coelho: é, portanto, enigmática. A crítica literária elaborada imaginativa e intelectivamente constrói um discurso que aponta para a coesão interna característica das obras formalmente bem estruturadas, mas este estudo, ao contrário, torna conhecido os (des)caminhos de um texto cujo maior pecado entre os maiores é não ter coerência interna nenhuma. Há inúmeras contradições na narrativa, erros infantis de coerência lingüística e personagens mal construídos. Acentua a fragilidade do protagonista, um pastor de ovelhas que lê autores clássicos e viaja ao Oriente em busca do auto-conhecimento metaforizado num suposto tesouro escondido em pirâmides egípcias. Observa-se que o herói inverossímil peca pela desarmonia entre sua fala, seus desejos e o contexto em que está inserido.
Paulo Coelho dá ao leitor acomodado aquilo que ele espera encontrar no livro, ''um excitante vulgar procurando qualificar-se como arte sofisticada''.
Não haveria nenhum apelo à análise, nenhuma exigência de esforço perceptivo, nenhum estranhamento. Apenas lugares comuns temperados com pregações conformistas.
Não haveria nenhum apelo à análise, nenhuma exigência de esforço perceptivo, nenhum estranhamento. Apenas lugares comuns temperados com pregações conformistas.
Ao examinar o romance pelo viés ideológico percebe-se que O Alquimista[5] funciona como um ''sedativo'' para a consciência infeliz do homem contemporâneo. Pinça uma das sentenças mais citadas de Coelho (''quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo'') assinalando que ''frases assim teimam em preencher o vazio da classe média e da pequena-burguesia, acossadas pela desesperança, perplexas, porque não entendem as razões do isolamento em que se meteu o indivíduo, porque não enxergam na tirania mercadológica, a conversão do sujeito em objeto e do objeto em sujeito''. Precisa dizer mais?
Mas é preciso entender isso: não se trata de um livro, apenas. É o fenômeno midiático mais bem acabado deste início de século, o que explica muita coisa. A conceituação do produto, por exemplo, é certeira: ambigüidade, mistério, relações humanas, um pouco de religião ou misticismo, seitas secretas, regiões remotas do planeta, culturas exóticas, auto-conhecimento. A expectativa sobre sua recepção também é milimetricamente calculada:
8 milhões de exemplares colocados à venda em todo mundo, capas nas principais revistas semanais do Brasil, 60 países, 36 línguas, um sucesso depois do outro, farto material na imprensa, quase só se fala nisso no meio cultural. Difícil ficar de fora. Este fato confirma exatamente a angústia presente no texto de Outubro Retalhado, “onde o recordista é o único que pratica o otimismo. Motivo? Sua proposta de livro se casa com a realidade neo-liberal do terceiro milênio. Independente do lado por que se enxerga hoje o livro, apenas uma bolsa de valores impera – a stock exchange”. (Santiago, p. 77-78).
Paulo Coelho vai juntar mais alguns títulos honoríficos aos que já tem e, daqui a dois anos, deverá lançar outro produto destinado a quebrar novas barreiras. Pouca gente, no entanto, falará de sua literatura, já que ela ocupa um lugar secundário na significação do seu objeto. Mesmo recheado de superlativos ele continuará sendo um escritor comum, o que não significa que seja um mau autor. Não se trata disso. Mas, o conjunto de sua obra nem de longe merece tamanha exposição.
Percebe-se que Silviano Santiago apresenta a passividade de alguns intelectuais recordistas em relação aos problemas sociais e políticos vigentes mas, infelizmente, a questão é muito mais grave; e em última análise, foi essa atitude passiva que todos - ou quase todos - os intelectuais assumiram diante da "ordem" chamada nova em seu estado nascente, quando podia ser sufocada.
O intelectual não deve ser "inserido" na sociedade, mas deve tomar nela o lugar que lhe compete, ativamente, como os demais membros do grupo. A inteligência, se quiser sobreviver terá que tomar parte ativa na vida social. E um dos aspectos da vida social ativa será o de conseguir ela mesma o seu próprio lugar, porque fora disto não se compreende um funcionamento normal da inteligência, além de receber prêmios e dar palestras sem conteúdo social.
O texto Outubro Retalhado é um capítulo de forte referência literária contido no livro O Cosmopolitismo do Pobre que só vem a enriquecer a temática dos temas abordados por Silviano Santiago. Por outro lado, não nos surpreende em nada que o autor já tenha sido tão premiado pelo conjunto de sua obra, o que enaltece ainda mais a seriedade, a objetividade e a criatividade com que Silviano Santiago caracteriza a sua produção literária, o que muito nos envaidece.
[1] CARVALHAL, Tania Franco. Antonio Candido e a Literatura Comparada no Brasil. Anais do I Congresso ABRALIC. Porto Alegre: UFRGS, 1988, vol. 1, p. 15.
[2] COETZEE, J. M. As Vidas dos Animais. Trad. Maria de Fátima St. Aubyn. Lisboa: Editora Temas & Debates, 2000. 134p.
[3] SONTAG, Susan. A Doença como Metáfora. Trad. Maria Golwasser. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984. 108p.
[4] WOLF, Christa. Medeia – Vozes. Trad. João Barreto. Lisboa: Editora Cotovia, 1996.
[5] COELHO, Paulo. O alquimista. Rio de Janeiro: Editora Globo S/A, 2004.
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